Em 17 de junho de 2011, gravei longa entrevista com Cordioli. Até
hoje ainda continuava inédita, aproveito então a data do aniversário de seu
nascimento para publicar uma parte de seu depoimento.
Catarinense de Braço do Norte, Lourenço João Cordioli – recebeu-nos em sua residência naquele rigoroso
inverno paulistano e entre partidas disputadas em sala aquecida por lareira (ele
mesmo havia cortado a madeira); cafés e guloseimas; comentários sobre quadros e
retratos; e, sobretudo, entre boas risadas, o tri-campeão paulista nos revelou
os dissabores e atritos que precisou superar para ser aceito na seleta
sociedade enxadrística do final dos anos 1930 e início dos anos 1940 no Clube de Xadrez São Paulo.
Cordioli falou-nos como retomou os
estudos e como foi o início de sua brilhante carreira de advogado trabalhista.
Na próxima semana, dedicaremos maior espaço à sua concepção de jogo e ao seu
trabalho como dirigente. Aproveitemos, então, das saborosas lembranças desse gentleman de alta linhagem cuja nobreza
e inteligência nos encantam quando o ouvimos repassar- com espantosa riqueza de
pormenores- épocas memoráveis de sua trajetória:
Saí
de casa, aos quinze anos, por minha conta e risco, sem saber para onde ia
exatamente. Meu primeiro emprego foi em uma cavalariça. O segundo, mover terra
na construção de uma estrada. Costumo dizer, exagerando um pouco, que já fui a
pé de Joinville a Curitiba. Fui mesmo, não em uma etapa, mas em várias,
trabalhando.
No final dos anos 30, já em São
Paulo, comprei um restaurante em Santo Amaro juntamente com meus irmãos.
Chamava-se “Bar São Paulo”. Um dia, estava jogando meu xadreizinho no bar e aí
entrou um cidadão, jogou uma partida comigo, não lembro se ganhou ou perdeu- e
ele me falou “você tem jeito, mas aqui no bar não vai progredir, vá para o
clube , lá você enfrentará os tubarões”, aí decidi ir à Rua Alves Penteado para
conhecer o Clube, ficava em um salão ao lado de um banco. Nesse período ainda
não o frequentava.
O “Bar São Paulo” era um bom restaurante e
dava para viver folgado, mas não era o meu sonho e na época ainda não sabia bem
com o que sonhava. Mas aquilo não queria mais.
Saí do restaurante, vendi minha parte.
Quando comecei a frequentar o Clube,
a sede ficava no edifício Martinelli. Eu tinha poucos amigos nessa época, era
de briga! Nesse tempo havia, digamos assim, uma política de bloquinhos contra
os novos, como acontece em todo lugar. Eu tinha vontade de jogar o campeonato interclubes
na 1ª categoria, mas não podia, não me deixavam, precisava passar pelos que
mandavam. Conversei com Américo Porto Alegre, presidente da Federação e bom
administrador, e ele sugeriu que eu formasse um clube para disputar a 1ª
categoria. Formei, então, o Clube Atlético São Paulo – o CASP- em Santo Amaro
em 1942, eu era o primeiro tabuleiro e enfrentei os melhores jogadores. Os
grandes nomes da época eram Vicente Túlio Romano, Paulo Roberto Duarte Filho, jogador
muito forte e brincalhão, Emilío Nacif, dono de uma loja na rua São Bento, José
Pestana da Silva, Flávio de Carvalho Jr., o xodó do xadrez paulista, era ele e
mais ninguém, Raul Herman Charlier, campeão dos tempos em que os campeonatos
não eram das federações, Henrique de Moraes Bastos, Boris Schneirderman,
da Escola Politécnica, Walter Pereira Leser, médico e futuro secretário da saúde, Orfeu d´Agostine, médico e
jornalista. Márcio Elísio de Freitas era mais novo. Chegou depois e em 1947 foi
campeão brasileiro.
Em 1942, a Federação Paulista foi
criada graças à lei esportiva de Getúlio Vargas. Em 1943, as federações foram
oficializadas e começou o 1º campeonato de cada Federação. O primeiro
Campeonato Paulista oficial foi aberto. No ano seguinte, haveria um torneio
para apurar quem seria o desafiante, o campeonato seguiria o modelo do Mundial.
Quando foram organizá-lo, não havia classificação oficial para ninguém e todo
mundo queria jogar, todo mundo queria ser o melhor. E o Cordioli não tinha
projeção na época, achavam que eu não tinha categoria. Como a turma do clubinho
não queria que eu jogasse, comecei a esbravejar, balancei o coreto.
Um dia, Vicente Túlio Romano me chamou e disse
que eu falava demais, que eu atrapalhava, para eu ficar bonzinho que ele iria
apoiar minha entrada no paulista. Joguei o torneio, enfrentei oposição, mas
acabei jogando.
Romano era muito solene, chegava ao Clube de
chapéu, cachecol, capa de gabardine e guarda-chuva, era tão notável esse aparato
que jamais esqueci-, era um personagem digno de uma fita de cinema. Ele trabalhava
como datiloscopista da polícia e sua memória era fenomenal. No Clube, era um
dos principais dirigentes por baixo da cortina, era ele que mandava.
Foi nessa época que fiz amizade com Ludwig
Engels que jogava pela equipe da Alemanha. Estava na Argentina quando eclodiu a
guerra. Engels não tinha muita facilidade para falar, era arredio. Ficamos
muito amigos, ele ia todos os dias a Santo Amaro, tinha um bonde de porta a
porta. Jogamos um match de treinamento em 1949.
Quando eu conheci a dona Ewalda, tudo mudou.
Ela me incentivou a voltar aos estudos. Eu tinha só o primário e me beneficiei
de uma legislação favorável, fiz o curso de madureza.
Recebi convite de Benjamin Sales
Arcuri, dono do Anglo Latino, para estudar em troca de xadrez. Formei uma
equipe juntamente com Klaus Ulrich Heilbrum. Jogando pela equipe do Anglo,
consegui terminar o Clássico. Sempre fui de ler, por isso não foi difícil para
mim. Em 1952, prestei concurso para entrar na Faculdade de Direito do Largo São
Francisco e fui aprovado com a terceira maior nota. Formei-me em 1956 e comecei
minha carreira de advogado. Na vida, duas coisas são fundamentais: trabalhar e
acreditar. De repente tudo muda. Às vezes a vida muda nosso plano, a gente não
sabe o amanhã.
O Direito era minha vocação. Meu
escritório era bem frequentado. Gosto de contar, com uma ponta de vaidade, que
reuni, em um só processo, 87 clientes. Havia uma lei que dizia que o trabalho
noturno devia ser remunerado com acréscimo de 20%, salvo se o horário
decorresse da natureza do trabalho. Um dia, um trabalhador me procurou e disse “doutor, trabalho na CMTC e não ganho o
adicional noturno”. Estudei a lei e concluí que estava errada. Não existe
trabalho de natureza noturna. O trabalho noturno é do interesse da empresa ou
de quem contrata. Ganhamos a causa e aí funcionários da CMTC, da TELESP, etc...
vinham me procurar. Havia grande desconhecimento sobre adicionais. Adicional de
periculosidade, por exemplo, ninguém sabia o que era. Com essa causa ganhei
muito dinheiro, era uma fonte inesgotável, aí me aprumei.
Nos anos de estudo e início da
carreira, joguei menos. Voltei mais tarde, final dos anos 50. Na época, Márcio
Elísio de Freitas era presidente do Clube e revolucionou o xadrez de São Paulo.
Normalmente, os jogadores de xadrez não queriam nada com a administração e a política
do Clube. Márcio se interessava e era combativo. Ele era genro de um dos
diretores de uma empresa construtora e conseguiu através do seu prestígio, de
sua combatividade, comprar a nova sede, na Rua Araújo. Márcio era muito acessível, muito inteligente e
objetivo.
Cordioli
completaria hoje 101 anos. Quando o entrevistei, estava com 94 e continuava com
espantosa lucidez e nos anos seguintes continuou participando de torneios de
xadrez.