quinta-feira, 10 de agosto de 2017

O inesquecível Lourenço João Cordioli (1916-2015): personificação da inteligência e da elegância






Em 17 de junho de 2011,  gravei longa entrevista com Cordioli. Até hoje ainda continuava inédita, aproveito então a data do aniversário de seu nascimento para publicar uma parte de seu depoimento.  
Catarinense de Braço do Norte, Lourenço João Cordioli recebeu-nos em sua residência naquele rigoroso inverno paulistano e entre partidas disputadas em sala aquecida por lareira (ele mesmo havia cortado a madeira); cafés e guloseimas; comentários sobre quadros e retratos; e, sobretudo, entre boas risadas, o tri-campeão paulista nos revelou os dissabores e atritos que precisou superar para ser aceito na seleta sociedade enxadrística do final dos anos 1930 e início dos anos 1940 no Clube de Xadrez São Paulo.
Cordioli falou-nos como retomou os estudos e como foi o início de sua brilhante carreira de advogado trabalhista. Na próxima semana, dedicaremos maior espaço à sua concepção de jogo e ao seu trabalho como dirigente. Aproveitemos, então, das saborosas lembranças desse gentleman de alta linhagem cuja nobreza e inteligência nos encantam quando o ouvimos repassar- com espantosa riqueza de pormenores- épocas memoráveis de sua trajetória:

            Saí de casa, aos quinze anos, por minha conta e risco, sem saber para onde ia exatamente. Meu primeiro emprego foi em uma cavalariça. O segundo, mover terra na construção de uma estrada. Costumo dizer, exagerando um pouco, que já fui a pé de Joinville a Curitiba. Fui mesmo, não em uma etapa, mas em várias, trabalhando.
No final dos anos 30, já em São Paulo, comprei um restaurante em Santo Amaro juntamente com meus irmãos. Chamava-se “Bar São Paulo”. Um dia, estava jogando meu xadreizinho no bar e aí entrou um cidadão, jogou uma partida comigo, não lembro se ganhou ou perdeu- e ele me falou “você tem jeito, mas aqui no bar não vai progredir, vá para o clube , lá você enfrentará os tubarões”, aí decidi ir à Rua Alves Penteado para conhecer o Clube, ficava em um salão ao lado de um banco. Nesse período ainda não o frequentava.
 O “Bar São Paulo” era um bom restaurante e dava para viver folgado, mas não era o meu sonho e na época ainda não sabia bem com o que sonhava. Mas aquilo não queria mais.  Saí do restaurante, vendi minha parte. 
Quando comecei a frequentar o Clube, a sede ficava no edifício Martinelli. Eu tinha poucos amigos nessa época, era de briga! Nesse tempo havia, digamos assim, uma política de bloquinhos contra os novos, como acontece em todo lugar. Eu tinha vontade de jogar o campeonato interclubes na 1ª categoria, mas não podia, não me deixavam, precisava passar pelos que mandavam. Conversei com Américo Porto Alegre, presidente da Federação e bom administrador, e ele sugeriu que eu formasse um clube para disputar a 1ª categoria. Formei, então, o Clube Atlético São Paulo – o CASP- em Santo Amaro em 1942, eu era o primeiro tabuleiro e enfrentei os melhores jogadores. Os grandes nomes da época eram Vicente Túlio Romano, Paulo Roberto Duarte Filho, jogador muito forte e brincalhão, Emilío Nacif, dono de uma loja na rua São Bento, José Pestana da Silva, Flávio de Carvalho Jr., o xodó do xadrez paulista, era ele e mais ninguém, Raul Herman Charlier, campeão dos tempos em que os campeonatos não eram das federações,   Henrique de Moraes Bastos, Boris Schneirderman, da Escola  Politécnica, Walter Pereira Leser, médico e futuro secretário da saúde, Orfeu d´Agostine, médico e jornalista. Márcio Elísio de Freitas era mais novo. Chegou depois e em 1947 foi campeão brasileiro.
Em 1942, a Federação Paulista foi criada graças à lei esportiva de Getúlio Vargas. Em 1943, as federações foram oficializadas e começou o 1º campeonato de cada Federação. O primeiro Campeonato Paulista oficial foi aberto. No ano seguinte, haveria um torneio para apurar quem seria o desafiante, o campeonato seguiria o modelo do Mundial. Quando foram organizá-lo, não havia classificação oficial para ninguém e todo mundo queria jogar, todo mundo queria ser o melhor. E o Cordioli não tinha projeção na época, achavam que eu não tinha categoria. Como a turma do clubinho não queria que eu jogasse, comecei a esbravejar, balancei o coreto.
 Um dia, Vicente Túlio Romano me chamou e disse que eu falava demais, que eu atrapalhava, para eu ficar bonzinho que ele iria apoiar minha entrada no paulista. Joguei o torneio, enfrentei oposição, mas acabei jogando.   
 Romano era muito solene, chegava ao Clube de chapéu, cachecol, capa de gabardine e guarda-chuva, era tão notável esse aparato que jamais esqueci-, era um personagem digno de uma fita de cinema. Ele trabalhava como datiloscopista da polícia e sua memória era fenomenal. No Clube, era um dos principais dirigentes por baixo da cortina, era ele que mandava. 
Foi nessa época que fiz amizade com Ludwig Engels que jogava pela equipe da Alemanha. Estava na Argentina quando eclodiu a guerra. Engels não tinha muita facilidade para falar, era arredio. Ficamos muito amigos, ele ia todos os dias a Santo Amaro, tinha um bonde de porta a porta. Jogamos um match de treinamento em 1949.
 Quando eu conheci a dona Ewalda, tudo mudou. Ela me incentivou a voltar aos estudos. Eu tinha só o primário e me beneficiei de uma legislação favorável, fiz o curso de madureza.
Recebi convite de Benjamin Sales Arcuri, dono do Anglo Latino, para estudar em troca de xadrez. Formei uma equipe juntamente com Klaus Ulrich Heilbrum. Jogando pela equipe do Anglo, consegui terminar o Clássico. Sempre fui de ler, por isso não foi difícil para mim. Em 1952, prestei concurso para entrar na Faculdade de Direito do Largo São Francisco e fui aprovado com a terceira maior nota. Formei-me em 1956 e comecei minha carreira de advogado. Na vida, duas coisas são fundamentais: trabalhar e acreditar. De repente tudo muda. Às vezes a vida muda nosso plano, a gente não sabe o amanhã.   
O Direito era minha vocação. Meu escritório era bem frequentado. Gosto de contar, com uma ponta de vaidade, que reuni, em um só processo, 87 clientes. Havia uma lei que dizia que o trabalho noturno devia ser remunerado com acréscimo de 20%, salvo se o horário decorresse da natureza do trabalho. Um dia, um trabalhador me procurou e disse  “doutor, trabalho na CMTC e não ganho o adicional noturno”. Estudei a lei e concluí que estava errada. Não existe trabalho de natureza noturna. O trabalho noturno é do interesse da empresa ou de quem contrata. Ganhamos a causa e aí funcionários da CMTC, da TELESP, etc... vinham me procurar. Havia grande desconhecimento sobre adicionais. Adicional de periculosidade, por exemplo, ninguém sabia o que era. Com essa causa ganhei muito dinheiro, era uma fonte inesgotável, aí me aprumei.
Nos anos de estudo e início da carreira, joguei menos. Voltei mais tarde, final dos anos 50. Na época, Márcio Elísio de Freitas era presidente do Clube e revolucionou o xadrez de São Paulo. Normalmente, os jogadores de xadrez não queriam nada com a administração e a política do Clube. Márcio se interessava e era combativo. Ele era genro de um dos diretores de uma empresa construtora e conseguiu através do seu prestígio, de sua combatividade, comprar a nova sede, na Rua Araújo.  Márcio era muito acessível, muito inteligente e objetivo.


Cordioli completaria hoje 101 anos. Quando o entrevistei, estava com 94 e continuava com espantosa lucidez e nos anos seguintes continuou participando de torneios de xadrez.