terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Um coração na biblioteca





         Parece inacreditável, mas há mais de dois séculos o coração do poeta, dramaturgo e filósofo Voltaire (1694-1778) continua cuidadosamente preservado e guardado segundo o desejo do marquês de Villette, grande amigo do autor e em cuja residência Voltaire faleceu. O marquês ordenou que o coração do filósofo fosse extraído e colocado em caixa de metal dourada. O órgão ficou conservado graças a uma preparação com álcool e a caixa trazia a inscrição: “Coração de Voltaire, morto em Paris, 30 de maio de 1778”.  Algum tempo depois, o coração foi transferido para o castelo de Ferney (onde o filósofo residiu nas duas últimas décadas de vida) e lá permaneceu até a Revolução. 
         O destino do órgão enfrenta momentos de incertezas quando, em 1864, com a morte de Voltaire Villette (filho do marquês), herdeiro algum desejou reivindicá-lo. Era o governo de Napoleão III e a administração  finalmente decide colocá-lo no pedestal da estátua de Voltaire feita por Houdan e expô-la na biblioteca imperial com a inscrição: “Coração de Voltaire entregue à Biblioteca imperial pelos herdeiros do marquês de Villette”. Mais de meio século depois, o órgão ilustre continuava na Biblioteca (hoje o prédio da Bibliothèque Nationale de France dedicado a partituras e manuscritos) situada na rua Richelieu.
         Em maio de 2010, operários encarregados de transportar a estátua para o museu de Moedas e Medalhas sentiram um cheiro muito forte emanando do pedestal. Foi então solicitado um minucioso trabalho científico a fim de verificarem as condições do coração. Ao cabo de diversas etapas de pesquisa envolvendo especialistas de várias áreas, chegaram à conclusão que o coração de Voltaire seria conservado por meio de um tratamento de anóxia (ausência de oxigênio). Após esse processo, o órgão não poderia  ser colocado na geladeira pois isso aumentaria o risco de desenvolver mofo.    
       Outro aspecto notável desse processo diz respeito à forma de abrir a caixa hermeticamente fechada onde se encontra o coração sem provocar danos ao órgão. Para tanto, especialistas conseguiram explorar o conteúdo graças à “fibroscopia”.  O resultado dessa exploração  foi auspicioso: o coração continua conservado, embora o líquido tenha desaparecido.
        Se algum curioso desejar conhecer a estátua em cujo pedestal encontra-se o coração de Voltaire, basta subir até o primeiro andar da biblioteca Richelieu (58, rue de Richelieu no distrito 2 em Paris).

As informações deste texto foram extraídas do artigo “Le coeur de Voltaire: un secret bien gardé” ( O coração de Voltaire: um segredo bem guardado) de Nathalie Buisson – especialista de química inorgânica, responsável do laboratório científico do departamento de Conservação.
       Agradeço ao presidente da sala “V” (literatura francesa)  e de uma bibliotecária do mesmo setor da Bibliothèque Nationale de France (François Mitterand) que gentilmente me cederam uma cópia impressa desse excelente e elucidativo documento. 

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Véspera de Natal (1882) Guy de Maupassant

Assim como outros escritores do século XIX, Maupassant escreveu contos tendo a noite de Natal como tema. O autor, conhecido por sua fina análise psicológica e suas belas representações da natureza  (era contemporâneo das pesquisas impressionistas), traça um perfil cru dos camponeses da Normandia em "Réveillon" (Véspera de Natal)  , publicado em 1882. Eis a tradução:




Não sei exatamente o ano. Havia um mês inteiro eu caçava com fúria, com uma alegria selvagem, com esse ardor que temos pelas paixões novas.
Eu estava na Normandia, na casa de um parente solteiro, Jules de Banneville, sozinho com ele, uma empregada, um caseiro e um guarda no seu castelo senhorial. Esse castelo, velha construção acinzentada,  contornada de pinheiros gemedores, no centro de longas avenidas de carvalhos nas quais galopava o vento, parecia abandonado havia séculos. Um antigo mobiliário ocupava sozinho as peças sempre fechadas, nos quais  essas pessoas que vemos nos retratos  pendurados  em um corredor, tão tempestuosas quanto as avenidas, recebiam  cerimoniosamente os nobres vizinhos.
            Quanto a nos, nos refugiamos  simplesmente na cozinha, único canto habitável da mansão, uma cozinha imensa da qual as sombras longínquas clareavam quando jogávamos mais lenha na vasta lareira. Então, cada noite, após uma doce sonolência diante do fogo, depois que nossa botas encharcadas ficavam muito tempo expostas e que nossos cães de caça, deitados em círculo entre nossas pernas, tinham  sonhado com caças, latindo como sonâmbulos,subimos para nosso quarto.
            Era a única peça que possuía teto bem construído e rebocado para evitar  camundongos. Mas ela tinha se tornado nua, branca, revestida com cal, com fuzis, chicotes para cães e trompas de caça pendurados nas paredes; e nós  nos escorregávamos tremendo em nossas camas, nos dois cantos dessa habitação siberiana.
A uma légua em frente ao castelo, a falésia a pique caia no mar; e os potentes  sopros do oceano, dia e noite, faziam suspirar as grandes árvores curvadas,  chorar  o teto e os cata-ventos , gritar toda a venerável construção que se enchia de vento por suas telhas separadas, suas chaminés largas como abismo, suas janelas que não fechavam mais.
           
            Naquele dia havia gelado horrivelmente. A noite tinha vindo. Nós íamos nos colocar à mesa diante do grande fogo da alta chaminé na qual assavam um dorso de coelho com duas perdizes jogadas que cheiravam muito bem.
            Meu primo levantou a cabeça: “Não fará calor ao se deitar” afirmou.
            Indiferente, repliquei: “Não, mas teremos  patos nos lagos amanhã de manhã.”
            A empregada, que colocava nossos pratos em uma ponta da mesa e os pratos dos domésticos no outro lado, perguntou: “Os senhores sabem que esta noite é véspera de Natal?”
            Não sabíamos nada  seguramente porque não olhávamos mais o calendário. Meu companheiro retomou: “Então, é hoje a missa de meia noite. É por isso que tocaram o sino o dia todo.!”
            A doméstica replicou: “Sim e não, senhor; tocaram também porque o pai Fournel morreu.”
            O pai Fournel, antigo pastor, era uma celebridade do país.  Com noventa e seis anos, ele nunca tinha ficado doente até aquele momento quando, havia um mês, ele tinha pegado frio, tendo caído em um lago  em noite escura. No dia seguinte, ele ficou acamado. Desde então, agonizara.
            Meu primo voltou para mim: “Se quiser”, disse “iremos daqui a pouco ver esses desafortunados”.  Ele queria falar da família do velho, seu neto, de cinquenta e oito anos, e a esposa deste, um ano mais jovem. A geração intermediária não existia mais havia muito tempo. Eles habitavam um lamentável casebre, no lado direito, à entrada do vilarejo.
            Mas não sei por que  esta ideia de Natal, no fundo desta solidão, nos deixou com vontade de conversar. Os dois, em tetê-à-tête, nós nos contávamos histórias de antigas vésperas de Natal, aventuras dessa noite louca, os bons momentos passados e os despertares do dia seguinte, os despertares a dois com sua surpresas incríveis, a surpresa das descobertas.
            Desta maneira, nosso jantar foi longo. Numerosos cachimbos o seguiram; e invadidos par esses regozijos de solitários,  alegrias comunicativas que nascem súbito entre dois amigos íntimos, nós falávamos sem repouso, vasculhando em nós para contar lembranças confidenciais do coração que escapam nessas horas de efusão.
            A empregada, que saíra havia muito, reapareceu  “Vou à missa, senhor. 
             - Já!
            -São onze e quinze.
            -  Se fôssemos também até a igreja? Perguntou Jules, essa missa de Natal é bem curiosa no campo. “
            Aceitei e nós partimos, envolvidos em nossas peles de caça.
            Um frio agudo golpeava o rosto , fazia os olhos chorar. O ar cru se apoderava dos pulmões, secava a garganta. O céu profundo, limpo e duro, estava coberto de estrelas que diríamos empalidecidas pela geada, elas cintilavam não como fogos, mas como astros de gelo, de cristalizações brilhantes. Ao longo, sobre a terra inexorável, seca e estrondosa, os tamancos dos camponeses ecoavam, e por todo o horizonte, pequenos sinos do vilarejo tiniam, jogavam suas notas delicadas e brandas na vasta noite glacial.
            O campo não dormia. Galos, enganados por esses barulhos, cantavam; e passavam ao longo dos estábulos, escutava sacudir  as bestas perturbadas  por esses rumores da vida.
            Aproximando-se do lugarejo, Jules lembrou novamente dos Fournel. “Eis o casebre deles, disse: entremos!”.
             Ele bateu na porta muito tempo em vão. Então, uma vizinha que saia de sua casa para ir à igreja, percebendo nossa presença: “Eles estão na missa, senhores; eles foram rezar para o pai.”
            “Nós o veremos ao saírem da igreja”, disse meu primo.
            A lua, declinando-se, insinuava à beira do horizonte sua silhueta de foice no meio dessa disseminação infinita de grãos luzentes jogados aos punhados no espaço. E pelo campo negro, pequenos fogos tremedores vinham de todo lado em direção ao sino pontudo que soava  sem repouso. Entre os pátios das fazendas plantadas de árvores, no meio de planícies sombrias, esses fogos saltavam rente à terra. Eram lanternas de chifre que os camponeses levavam diante de suas mulheres de boné branco, envolvidas em longas mantas negras, e seguidas de moleques recém acordados ,segurando a mão, na noite.
            Pela porta aberta da igreja, percebia-se o coro iluminado. Uma guirlanda de velas de um níquel fazia o contorno da nave; e por terra, em uma capela à esquerda, um enorme menino Jesus espalhava sobre a vasta palha, no meio de ramos de pinheiro,  sua  nudez rosa e artificial.
            O ofício começava. Os camponeses curvados, as mulheres de joelhos, rezavam. Essas pessoas simples, despertadas pela noite fria, olhavam, comovidas, a imagem grosseiramente pintada, e elas uniam as mãos, ingenuamente convencidas tanto quanto intimidadas pelo humilde esplendor dessa representação pueril.
            O ar glacial fazia palpitar as chamas. Jules me disse “ficaremos melhor lá fora.”
            E na estrada deserta, enquanto todos os camponeses prosternados tremiam devotamente, nós recomeçamos as  conversas sobre antigas lembranças tão longamente que o ofício tinha terminado quando voltamos à cidadezinha.
            Um fio de luz passava sob a porta dos Fournel. “Eles velam o defunto, disse meu primo. Entremos na casa dessas pobres criaturas, vai lhes fazer bem.”

            Na chaminé, chispas agonizantes. A peça preta, revestida de sujeira, com suas vigas carcomidas, escurecidas pelo tempo., estava plena de um odor sufocante de chouriço grelhado. No meio de uma grande mesa, sob a qual o baú de pães arredondava-se como um ventre em seu cumprimento, uma vela em candelabro de ferro torto, da qual partia  até o teto a fumaça pungente de sua mecha em champignon. – E os dois Fournel, o homem e a mulher, estavam em plena ceia de Natal tetê-à-tête.
            Tristes, com ar aflito e a face rude dos camponeses, eles comiam gravemente sem dizer palavra. Em um único prato,  disposto entre eles,um grande pedaço de chouriço sobressaia de seu vapor pestilento.  A  intervalos regulares, eles arrancavam uma porção com a ponta de suas facas, esmagavam-no sobre o pão cortada em pedaços, depois mastigavam com lentidão.
            Quando o copo do homem esvaziava, a mulher, pegando o jarro de cidra o preenchia.
            Com nossa entrada, eles se levantaram e nos fizeram sentar, nos propuseram de “fazer como eles”, e com nossa recusa, recomeçaram a comer.
            Ao cabo de alguns minutos de silencio, meu primo perguntou: “E então, Anthime, seu avô morreu?
            - Sim, meu caro senhor, ele foi desta para melhor.”
            O silêncio recomeçou. A mulher, por delicadeza, avivou a vela.  Em seguida, para dizer alguma coisa, acrescentei: “ele estava bem velho”.
            A esposa do neto do Fournel, de cinquenta e sete anos, respondeu: “Oh, seu tempo tinha terminado, ele não tinha mais nada para fazer aqui.”
            De repente, veio-me o desejo de ver o cadáver desse centenário, e pedi que me mostrassem.
            Os dois camponeses, até aquele momento plácidos, comoverem-se bruscamente. Seus olhos inquietos interrogavam-se, e eles não responderam.
            Meu primo, vendo a perturbação deles, insistiu.
            O homem, então, com um ar suspeito e trapaceiro, perguntou: “ Para que o senhor quer vê-lo?”
            -   Por nada, disse Jules, mas isso se faz todos os dias; por que não quer mostrá-lo?”
            O camponês ergueu os ombros. “Oh! Para mim, não há problema, mas a esta hora é inconveniente.”
            Mil suposições passaram em nosso espírito. Os netos do morto não se mexiam, continuaram frente à frente, os olhos baixos, com a pose entediada de pessoas descontentes, que parece dizer: “Vá embora”, meu primo fala com autoridade: “Vamos, Anthime, levante-se e conduza-nos ao teu quarto”. Mas o homem, tendo assumido sua posição, respondeu de mau humor: “Não vale a pena, ele na está mais lá, senhor.”
            - Mas então, onde ele está?
           A mulher interrompeu seu marido: - “Vou lhes dizer, nós o colocamos até amanhã no baú de pães, porque não tínhamos mais lugar”.
            E retirando o prato com chouriço, ela levantou a tampa da mesa, inclinou-se com a vela para clarear o interior do grande cofre fundo.  Percebemos alguma coisa cinzenta, uma espécie de longo pacote do qual saia, por um lado, uma cabeça magra  com cabelos brancos espetados, e no outro lado, dois pés nus.
            Era o velho, seco, os olhos fechados, enrolado em seu casaco de pastor, e dormindo seu último sono, no meio de antigas e negras migalhas de pão, tão seculares quanto ele.
            Seus netos tinham ceado em cima dele!
Jules, indignado, tremendo de cólera, gritou: “Porque vocês não o deixaram em sua cama, seus caipiras?
            Então a mulher começou a lamuriar, e rapidamente: “Vou explicar, meu bom senhor, temos só uma cama na casa. Nós dormíamos com ele antes, éramos três. Desde que ele ficou doente, nós dois dormíamos no chão; é duro, meu bravo senhor, nesses tempos. Então, quando ele morreu, pensamos: ‘Como ele não sofre mais, esse homem, para que serve deixá-lo na cama?’ Podemos deixar até amanhã no baú e dormimos na cama esta noite que será muito fria. Não pudemos dormir com o morto na cama, meus bons senhores”.
            Meu primo, encolerizado, saiu bruscamente batendo a porta, enquanto eu o seguia, rindo até as lágrimas. (tradução Ana Luiza Reis Bedê)