Assim como outros escritores do século XIX, Maupassant escreveu contos tendo a noite de Natal como tema. O autor, conhecido por sua fina análise psicológica e suas belas representações da natureza (era contemporâneo das pesquisas impressionistas), traça um perfil cru dos camponeses da Normandia em "Réveillon" (Véspera de Natal) , publicado em 1882. Eis a tradução:
Não sei exatamente o ano.
Havia um mês inteiro eu caçava com fúria, com uma alegria selvagem, com esse
ardor que temos pelas paixões novas.
Eu estava na Normandia, na
casa de um parente solteiro, Jules de Banneville, sozinho com ele, uma
empregada, um caseiro e um guarda no seu castelo senhorial. Esse castelo, velha
construção acinzentada, contornada de pinheiros gemedores, no centro
de longas avenidas de carvalhos nas quais galopava o vento, parecia abandonado
havia séculos. Um antigo mobiliário ocupava sozinho as peças sempre fechadas,
nos quais essas pessoas que vemos nos
retratos pendurados em um corredor, tão tempestuosas quanto as
avenidas, recebiam cerimoniosamente os
nobres vizinhos.
Quanto a nos, nos refugiamos simplesmente na cozinha, único canto
habitável da mansão, uma cozinha imensa da qual as sombras longínquas clareavam
quando jogávamos mais lenha na vasta lareira. Então, cada noite, após uma doce
sonolência diante do fogo, depois que nossa botas encharcadas ficavam muito
tempo expostas e que nossos cães de caça, deitados em círculo entre nossas
pernas, tinham sonhado com caças,
latindo como sonâmbulos,subimos para nosso quarto.
Era a única peça que possuía teto
bem construído e rebocado para evitar
camundongos. Mas ela tinha se tornado nua, branca, revestida com cal,
com fuzis, chicotes para cães e trompas de caça pendurados nas paredes; e
nós nos escorregávamos tremendo em
nossas camas, nos dois cantos dessa habitação siberiana.
A uma légua em frente ao
castelo, a falésia a pique caia no mar; e os potentes sopros do oceano, dia e noite, faziam
suspirar as grandes árvores curvadas,
chorar o teto e os cata-ventos ,
gritar toda a venerável construção que se enchia de vento por suas telhas
separadas, suas chaminés largas como abismo, suas janelas que não fechavam
mais.
Naquele
dia havia gelado horrivelmente. A noite tinha vindo. Nós íamos nos colocar à
mesa diante do grande fogo da alta chaminé na qual assavam um dorso de coelho
com duas perdizes jogadas que cheiravam muito bem.
Meu
primo levantou a cabeça: “Não fará calor ao se deitar” afirmou.
Indiferente,
repliquei: “Não, mas teremos patos nos
lagos amanhã de manhã.”
A
empregada, que colocava nossos pratos em uma ponta da mesa e os pratos dos
domésticos no outro lado, perguntou: “Os senhores sabem que esta noite é véspera de Natal?”
Não
sabíamos nada seguramente porque não
olhávamos mais o calendário. Meu companheiro retomou: “Então, é hoje a missa de
meia noite. É por isso que tocaram o sino o dia todo.!”
A
doméstica replicou: “Sim e não, senhor; tocaram também porque o pai Fournel
morreu.”
O pai
Fournel, antigo pastor, era uma celebridade do país. Com noventa e seis anos, ele nunca tinha
ficado doente até aquele momento quando, havia um mês, ele tinha pegado frio,
tendo caído em um lago em noite escura.
No dia seguinte, ele ficou acamado. Desde então, agonizara.
Meu
primo voltou para mim: “Se quiser”, disse “iremos daqui a pouco ver esses
desafortunados”. Ele queria falar da
família do velho, seu neto, de cinquenta e oito anos, e a esposa deste, um ano
mais jovem. A geração intermediária não existia mais havia muito tempo. Eles
habitavam um lamentável casebre, no lado direito, à entrada do vilarejo.
Mas
não sei por que esta ideia de Natal, no
fundo desta solidão, nos deixou com vontade de conversar. Os dois, em tetê-à-tête, nós nos contávamos
histórias de antigas vésperas de Natal, aventuras dessa noite louca, os bons
momentos passados e os despertares do dia seguinte, os despertares a dois com
sua surpresas incríveis, a surpresa das descobertas.
Desta
maneira, nosso jantar foi longo. Numerosos cachimbos o seguiram; e invadidos
par esses regozijos de solitários,
alegrias comunicativas que nascem súbito entre dois amigos íntimos, nós
falávamos sem repouso, vasculhando em nós para contar lembranças confidenciais
do coração que escapam nessas horas de efusão.
A
empregada, que saíra havia muito, reapareceu
“Vou à missa, senhor.
- Já!
-São
onze e quinze.
- Se fôssemos também até a igreja? Perguntou
Jules, essa missa de Natal é bem curiosa no campo. “
Aceitei
e nós partimos, envolvidos em nossas peles de caça.
Um
frio agudo golpeava o rosto , fazia os olhos chorar. O ar cru se apoderava dos
pulmões, secava a garganta. O céu profundo, limpo e duro, estava coberto de
estrelas que diríamos empalidecidas pela geada, elas cintilavam não como fogos,
mas como astros de gelo, de cristalizações brilhantes. Ao longo, sobre a terra
inexorável, seca e estrondosa, os tamancos dos camponeses ecoavam, e por todo o
horizonte, pequenos sinos do vilarejo tiniam, jogavam suas notas delicadas e
brandas na vasta noite glacial.
O
campo não dormia. Galos, enganados por esses barulhos, cantavam; e passavam ao
longo dos estábulos, escutava sacudir as
bestas perturbadas por esses rumores da
vida.
Aproximando-se
do lugarejo, Jules lembrou novamente dos Fournel. “Eis o casebre deles, disse:
entremos!”.
Ele bateu na porta muito tempo em vão. Então,
uma vizinha que saia de sua casa para ir à igreja, percebendo nossa presença:
“Eles estão na missa, senhores; eles foram rezar para o pai.”
“Nós
o veremos ao saírem da igreja”, disse meu primo.
A
lua, declinando-se, insinuava à beira do horizonte sua silhueta de foice no
meio dessa disseminação infinita de grãos luzentes jogados aos punhados no
espaço. E pelo campo negro, pequenos fogos tremedores vinham de todo lado em
direção ao sino pontudo que soava sem
repouso. Entre os pátios das fazendas plantadas de árvores, no meio de planícies
sombrias, esses fogos saltavam rente à terra. Eram lanternas de chifre que os
camponeses levavam diante de suas mulheres de boné branco, envolvidas em longas
mantas negras, e seguidas de moleques recém acordados ,segurando a mão, na
noite.
Pela
porta aberta da igreja, percebia-se o coro iluminado. Uma guirlanda de velas de
um níquel fazia o contorno da nave; e por terra, em uma capela à esquerda, um
enorme menino Jesus espalhava sobre a vasta palha, no meio de ramos de
pinheiro, sua nudez rosa e artificial.
O
ofício começava. Os camponeses curvados, as mulheres de joelhos, rezavam. Essas
pessoas simples, despertadas pela noite fria, olhavam, comovidas, a imagem
grosseiramente pintada, e elas uniam as mãos, ingenuamente convencidas tanto
quanto intimidadas pelo humilde esplendor dessa representação pueril.
O ar
glacial fazia palpitar as chamas. Jules me disse “ficaremos melhor lá fora.”
E na estrada deserta, enquanto todos
os camponeses prosternados tremiam devotamente, nós recomeçamos as conversas sobre antigas lembranças tão longamente
que o ofício tinha terminado quando voltamos à cidadezinha.
Um
fio de luz passava sob a porta dos Fournel. “Eles velam o defunto, disse meu
primo. Entremos na casa dessas pobres criaturas, vai lhes fazer bem.”
Na
chaminé, chispas agonizantes. A peça preta, revestida de sujeira, com suas
vigas carcomidas, escurecidas pelo tempo., estava plena de um odor sufocante de
chouriço grelhado. No meio de uma grande mesa, sob a qual o baú de pães
arredondava-se como um ventre em seu cumprimento, uma vela em candelabro de
ferro torto, da qual partia até o teto a
fumaça pungente de sua mecha em champignon. – E os dois Fournel, o homem e a
mulher, estavam em plena ceia de Natal tetê-à-tête.
Tristes,
com ar aflito e a face rude dos camponeses, eles comiam gravemente sem dizer
palavra. Em um único prato, disposto
entre eles,um grande pedaço de chouriço sobressaia de seu vapor
pestilento. A intervalos regulares, eles arrancavam uma
porção com a ponta de suas facas, esmagavam-no sobre o pão cortada em pedaços,
depois mastigavam com lentidão.
Quando
o copo do homem esvaziava, a mulher, pegando o jarro de cidra o preenchia.
Com
nossa entrada, eles se levantaram e nos fizeram sentar, nos propuseram de
“fazer como eles”, e com nossa recusa, recomeçaram a comer.
Ao
cabo de alguns minutos de silencio, meu primo perguntou: “E então, Anthime, seu
avô morreu?
-
Sim, meu caro senhor, ele foi desta para melhor.”
O
silêncio recomeçou. A mulher, por delicadeza, avivou a vela. Em seguida, para dizer alguma coisa,
acrescentei: “ele estava bem velho”.
A
esposa do neto do Fournel, de cinquenta e sete anos, respondeu: “Oh, seu tempo
tinha terminado, ele não tinha mais nada para fazer aqui.”
De
repente, veio-me o desejo de ver o cadáver desse centenário, e pedi que me
mostrassem.
Os
dois camponeses, até aquele momento plácidos, comoverem-se bruscamente. Seus
olhos inquietos interrogavam-se, e eles não responderam.
Meu
primo, vendo a perturbação deles, insistiu.
O
homem, então, com um ar suspeito e trapaceiro, perguntou: “ Para que o senhor
quer vê-lo?”
- Por nada, disse Jules, mas isso se faz todos
os dias; por que não quer mostrá-lo?”
O
camponês ergueu os ombros. “Oh! Para mim, não há problema, mas a esta hora é
inconveniente.”
Mil
suposições passaram em nosso espírito. Os netos do morto não se mexiam,
continuaram frente à frente, os olhos baixos, com a pose entediada de pessoas
descontentes, que parece dizer: “Vá embora”, meu primo fala com autoridade:
“Vamos, Anthime, levante-se e conduza-nos ao teu quarto”. Mas o homem, tendo assumido
sua posição, respondeu de mau humor: “Não vale a pena, ele na está mais lá,
senhor.”
- Mas
então, onde ele está?
A
mulher interrompeu seu marido: - “Vou lhes dizer, nós o colocamos até amanhã no
baú de pães, porque não tínhamos mais lugar”.
E
retirando o prato com chouriço, ela levantou a tampa da mesa, inclinou-se com a
vela para clarear o interior do grande cofre fundo. Percebemos alguma coisa cinzenta, uma espécie
de longo pacote do qual saia, por um lado, uma cabeça magra com cabelos brancos espetados, e no outro
lado, dois pés nus.
Era o
velho, seco, os olhos fechados, enrolado em seu casaco de pastor, e dormindo
seu último sono, no meio de antigas e negras migalhas de pão, tão seculares
quanto ele.
Seus
netos tinham ceado em cima dele!
Jules, indignado, tremendo de cólera, gritou: “Porque
vocês não o deixaram em sua cama, seus caipiras?
Então a mulher começou a lamuriar, e
rapidamente: “Vou explicar, meu bom senhor, temos só uma cama na casa. Nós
dormíamos com ele antes, éramos três. Desde que ele ficou doente, nós dois
dormíamos no chão; é duro, meu bravo senhor, nesses tempos. Então, quando ele
morreu, pensamos: ‘Como ele não sofre mais, esse homem, para que serve deixá-lo
na cama?’ Podemos deixar até amanhã no baú e dormimos na cama esta noite que
será muito fria. Não pudemos dormir com o morto na cama, meus bons senhores”.
Meu
primo, encolerizado, saiu bruscamente batendo a porta, enquanto eu o seguia,
rindo até as lágrimas. (tradução Ana Luiza Reis Bedê)