segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Madame de Sévigné: prazeres e desencantos da vida




     Imaginem uma mulher nobre, em 1651. O marido falece em duelo deixando- a viúva aos vinte e cinco anos e dois filhos para criar. Em 1671, sua filha casa-se e muda-se para o sul da França. Pouco tempo depois a jovem recebe a primeira carta da mãe. O que poderia ser apenas mais uma correspondência entre mãe e filha, interessando, quando muito, aos familiares, ganhou estofo, nos séculos seguintes, de monumento da literatura francesa no gênero epistolar.  E isso não se deve à alta condição da missivista, o fato de pertencer à nobreza, de frequentar os salões da moda e de ter amigos no poder. Tais dados conferem grande interesse documental ao texto, muito aprendemos sobre a vida na corte, sobre o que se discutia e sobre os grandes temas polêmicos.  A Imortalidade das cartas de Madame de Sévigné decorre, porém, de outros motivos. Podemos apontar como um dos elementos o fato das missivas representarem a expressão de uma personalidade inquieta, questionadora, inventiva e muitíssimo bem humorada. Seus (não poucos) momentos de angústia lancinante, seus temores, seu desencanto são vazados por meio de um estilo espontâneo, solto. Temos a impressão que escreve ao sabor da pena, em único fluxo, sem preocupação formal. Ao ler Madame de Sévigné, o leitor, a um tempo, desfruta do imenso prazer proporcionado pelos achados linguísticos da autora, pela desfaçatez com que aborda temas como a morte, a saudade, o (sem) sentido da vida e pela maneira que ela nos leva a pensar sobre nós mesmos, nossas fraquezas, mesquinharias, vãs gloriazinhas.    Vale dedicar tempo a essa deslumbrante carteadora. Transcrevo o início de uma de suas cartas a Madame de Grignan.
Lettre de Madame de Sévigné à sa fille Madame de Grignan
 Mercredi 16 mars 1672
Vous me demandez, ma chère enfant, si j´aime bien la vie. Je vous avoue que j´y trouve des chagrins cuisants; mais je suis encore plus dégoûtée de la mort: je me trouve si malheureuse d´avoir à finir tout ceci par elle que si je pouvais retourner en arrière je ne demanderais pas mieux. Je me trouve dans un engagement qui m´embarrasse: je suis embarquée dans la vie sans mon consentement; il faut que j´en sorte, cela m´assomme; et comment en sortirai - je? Par où? Par quelle porte? Quand sera-ce? En quelle disposition ? Souffrirai-je mille et mille douleurs, qui me feront mourir désespérée ? Aurai-je un transport au cerveau ? Mourrai-je d'un accident ? Comment serai-je avec Dieu ? Qu'aurai-je à lui présenter ? La crainte, la nécessité feront-elles mon retour vers lui ? N'aurai-je aucun autre sentiment que celui de la peur ? Que puis-je espérer ? Suis-je digne du paradis ? Suis-je digne de l'enfer ? Quelle alternative ! Quel embarras !

Carta de Madame de Sévigné a sua filha Madame de Grignan
Pergunta-me, querida filha, se gosto da vida. Confesso que  me deparo com mágoas lancinantes; mas sou ainda mais desgostosa da morte. Sinto-me tão infeliz de terminar tudo isso por ela que se eu pudesse voltar no tempo não pediria outra coisa. Encontro-me em situação embaraçosa, embarquei na vida sem o meu consentimento e será necessário que eu saia dela. Isso me deprime; e como sairei? Por onde?  Por qual porta? Quando será? Em que disposição? Sofrerei mil e uma dores que me farão morrer desesperada? Terei um derrame cerebral? Morrerei de um acidente? Como serei com Deus? O que terei para lhe apresentar? O temor, a necessidade contribuirão para que eu me volte pra ele? Não terei outro sentimento além do medo? Que posso esperar? Sou digna do paraíso? Sou digna do inferno? Que alternativa! Que embaraço! ( tradução  de Luli Bedê)

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