Imaginem uma mulher nobre, em 1651. O
marido falece em duelo deixando- a viúva aos vinte e cinco anos e dois filhos
para criar. Em 1671, sua filha casa-se e muda-se para o sul da França. Pouco
tempo depois a jovem recebe a primeira carta da mãe. O que poderia ser apenas
mais uma correspondência entre mãe e filha, interessando, quando muito, aos
familiares, ganhou estofo, nos séculos seguintes, de monumento da literatura
francesa no gênero epistolar. E isso não
se deve à alta condição da missivista, o fato de pertencer à nobreza, de
frequentar os salões da moda e de ter amigos no poder. Tais dados conferem
grande interesse documental ao texto, muito aprendemos sobre a vida na corte, sobre
o que se discutia e sobre os grandes temas polêmicos. A Imortalidade das cartas de Madame de Sévigné
decorre, porém, de outros motivos. Podemos apontar como um dos elementos o fato
das missivas representarem a expressão de uma personalidade inquieta,
questionadora, inventiva e muitíssimo bem humorada. Seus (não poucos) momentos
de angústia lancinante, seus temores, seu desencanto são vazados por meio de um
estilo espontâneo, solto. Temos a impressão que escreve ao sabor da pena, em
único fluxo, sem preocupação formal. Ao ler Madame de Sévigné, o leitor, a um
tempo, desfruta do imenso prazer proporcionado pelos achados linguísticos da
autora, pela desfaçatez com que aborda temas como a morte, a saudade, o (sem)
sentido da vida e pela maneira que ela nos leva a pensar sobre nós mesmos,
nossas fraquezas, mesquinharias, vãs gloriazinhas. Vale
dedicar tempo a essa deslumbrante carteadora. Transcrevo o início de uma de
suas cartas a Madame de Grignan.
Lettre
de Madame de Sévigné à sa fille Madame de Grignan
Mercredi 16 mars 1672
Vous
me demandez, ma chère enfant, si j´aime bien la vie. Je vous avoue que j´y
trouve des chagrins cuisants; mais je suis encore plus dégoûtée de la mort: je
me trouve si malheureuse d´avoir à finir tout ceci par elle que si je pouvais
retourner en arrière je ne demanderais pas mieux. Je me trouve dans un
engagement qui m´embarrasse: je suis embarquée dans la vie sans mon
consentement; il faut que j´en sorte, cela m´assomme; et comment en sortirai -
je? Par où? Par quelle porte? Quand sera-ce? En quelle disposition ? Souffrirai-je mille et mille douleurs, qui me
feront mourir désespérée ? Aurai-je un transport au cerveau ? Mourrai-je d'un
accident ? Comment serai-je avec Dieu ? Qu'aurai-je à lui présenter ? La
crainte, la nécessité feront-elles mon retour vers lui ? N'aurai-je aucun autre
sentiment que celui de la peur ? Que puis-je espérer ? Suis-je digne du paradis
? Suis-je digne de l'enfer ? Quelle alternative ! Quel embarras !
Carta de Madame de
Sévigné a sua filha Madame de Grignan
Pergunta-me,
querida filha, se gosto da vida. Confesso que me deparo com mágoas lancinantes; mas sou
ainda mais desgostosa da morte. Sinto-me tão infeliz de terminar tudo isso por
ela que se eu pudesse voltar no tempo não pediria outra coisa. Encontro-me em
situação embaraçosa, embarquei na vida sem o meu consentimento e será
necessário que eu saia dela. Isso me deprime; e como sairei? Por onde? Por qual porta? Quando será? Em que
disposição? Sofrerei mil e uma dores que me farão morrer desesperada? Terei um
derrame cerebral? Morrerei de um acidente? Como serei com Deus? O que terei
para lhe apresentar? O temor, a necessidade contribuirão para que eu me volte
pra ele? Não terei outro sentimento além do medo? Que posso esperar? Sou digna
do paraíso? Sou digna do inferno? Que alternativa! Que embaraço! (
tradução de Luli Bedê)
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