quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Mais do que nunca “socorro Voltaire”!




                                                                                     « Vou mais longe : Digo-vos que é Preciso Olhar Todos os Homens como Irmãos. O quê! Meu Irmão, o Turco? Meu Irmão, o Chinês? O Judeu?” (Voltaire- Tratado sobre a Tolerância)



Esquadro, pincel atômico, lápis, tampa de caneta, apontador e borracha sugerem um rifle, a frase “às armas cidadãos” completa a homenagem criada pelo cartunista chileno Francisco Olea às vítimas do atentado ao jornal Charlie Hebdo.    Essa imagem lembra-nos de imediato o mais opiniático batalhador pela liberdade de expressão não apenas na França, mas em toda Europa das Luzes- Voltaire.  A semelhança advém de dois aspectos essenciais: o alvo das ofensivas e a arma utilizada. De fato, tanto o filósofo quanto seus compatriotas jornalistas e chargistas do semanal satírico tinham como mira privilegiada (embora não única) a intolerância. 
   O autor de Cândido ou o Otimismo destilava seu fel contra aqueles que, em nome da Fé religiosa, incitavam à violência e às batalhas sangrentas. Os cidadãos- submersos no medo- professavam a religião oficial, não havia escolha, para viver em solo francês, devia-se obrigatoriamente seguir a religião do rei.  
  No Antigo Regime, com exceção do período que se estendeu do edito de Nantes (1598) ao edito de Fontainebleau ( 1685), no qual os protestantes desfrutaram de poucas liberdades, não havia alternativa: quem abdicasse da religião católica tornava-se inimigo do Estado. Tratava-se de uma intolerância institucionalizada. Sortilégio, blasfêmia, etc. eram crimes passíveis de tortura e morte. Passemos ao largo dos tipos de suplícios (os dois primeiros capítulos de Vigiar e Punir de Michel Foucault relatam em pormenores o trabalho dos carrascos dessa época), algo de arrepiar.
    Distante quinhentos quilômetros de Paris, um homem beirando os oitenta anos, carne e osso e muito doente, escrevia freneticamente ou ditava seus textos ao secretário particular. Milionário, reconhecido como um dos grandes poetas e dramaturgos do século XVIII, redigia o que ele chamava “fogos de artifício”.  Eram textos muito curtos, de rápida e fácil circulação e extremamente incendiários. Voltaire gostava de caricaturar as grandes figuras bíblicas: Abrahão, Adão, Davi, Ezequiel, Jesus, Jó, José, Moisés, Paulo, entre outros- queria dessacralizar, ressaltar o lado risível de muitas histórias do Antigo Testamento (alvo predileto de suas charges), mas os Evangelhos também permaneciam na mira de suas diatribes. 
     Voltaire acreditava no poder de demolição do riso. Desnecessário dizer que era perseguido e procurava esconder-se atrás de pseudônimos. Assim como os chargistas e demais colaboradores do jornal satírico francês, o filósofo não tinha papas  na língua e ridicularizava os fanatismos de toda ordem.  Os mais intolerantes na época de Voltaire, eram os católicos- os seguidores da religião oficial, então, eram alvejados impiedosamente.  O patriarca queria esclarecer, abrir os olhos dos cidadãos e foi considerado inimigo do rei. De sua escrivaninha, o escritor abalava os alicerces do Antigo Regime. Qual era a sua arma? “Aquela que tem a força do raio e a leveza do vento: uma pena” (Victor Hugo).
     Em 2 de fevereiro de 2006, o jornal France-soir  estampava na primeira página “Au secours Voltaire!” ( Socorro Voltaire!)  em referência ao furor de alguns Estados árabes e à cólera de grupos restritos de muçulmanos contra as caricaturas de Maomé feitas por um  jornal dinamarquês e reproduzidas pelo France-soir.  O defensor da liberdade de expressão e inimigo número um da intolerância morto há mais de dois séculos continua de uma flagrante atualidade.



Nenhum comentário:

Postar um comentário