“Je ris de ce que je veux, quand je veux »
Charb
Como os franceses viveram longos períodos de guerras religiosas, hoje
consideram a secularidade uma conquista
fundamental (data de 1905 a lei que estabelece separação entre Igreja e Estado
na França). Cada indivíduo escolhe seu credo e tem a liberdade de professá-lo. Nenhuma
crença é superior a outra. A laicidade não implica recusar as religiões, mas
deixar as decisões administrativas ao Estado.
Também
não foi da noite para o dia que a França alcançou a liberdade de expressão tão
prezada hoje no país. A história do povo francês é profundamente marcada por censuras
e repressões. Basta lembrarmos-nos do século XVIII, época em que a polícia
interceptava correspondências: livros eram apreendidos e as cartas que os
acompanhavam eram abertas a vapor e fechadas novamente. Tal expediente era
empregado pelo Cabinet Noir.
Havia
todo um sistema de espionagem a fim de abortar qualquer tipo de sedição que
estivesse a caminho. Relatórios semanais eram preparados para o chefe de
polícia.
A
forma de divulgar as ideias dos filósofos da Ilustração foi a publicação secreta de
textos proibidos. Muitos autores enviavam suas obras ao exterior para serem
impressas e mais tarde circularem clandestinamente em terras francesas.
O
Antigo Regime representa um dos inúmeros exemplos de cerceamento da liberdade
sofrido pelos gauleses. Todo esse passado de coerção levou-os a valorizar a
liberdade de exprimir o próprio pensamento, fazer piadas, charges, enfim, de
rir do que quiser, quando quiser. Essa liberdade tem limite: qualquer tipo de
racismo e de culto ao ódio ou à violência. Nesses casos, fala-se em crime.
Ora,
Basta folhearmos as páginas do Charlie
Hebdo para constatarmos que são impudentes, irreverentes, iconoclastas,
anticlericais, obscenos, não são, porém, brutais disseminadores do ódio como os
terroristas que os abateram. É surpreendente como várias pessoas escreveram que
os chargistas foram longe demais. Pode-se ler em filigrana certa
condescendência com os assassinos, embora ninguém, em sã consciência ouse
aprovar o ato de barbárie que ceifou 12 vidas no dia 7 de janeiro.
Concordamos
com o jornalista dinamarquês Flemming Rose ao afirmar: “A sátira é uma das
maneiras pelas quais uma sociedade aberta responde à violência, às ameaças, à
barbárie. A sátira é pacífica, mesmo quando fere. Ela não mata, mas ridiculariza
e expõe publicamente aquilo que os outros querem manter oculto. Evidentemente,
jamais uma charge valerá a vida de uma pessoa que seja. O problema é que alguns
insistem nessa ideia.”
A
reação dos terroristas contra as charges de Maomé, assim como o apoio a essa
reação violenta são intoleráveis. A propósito, é necessário esclarecer que o
alvo preferido dos jornalistas do Charlie
Hebdo são os muçulmanos fanáticos e não Maomé como nos esclarece Sérgio Augusto:
“[...]
os humoristas do Charlie ainda preferem
o profeta aos fanáticos reducionistas que se empenham em transformar o Islã
numa seita satânica e homicida; daí porque frequentemente o retratam de forma
simpática e sempre avacalham os jihadistas e seus correligionários.”
Insistimos na grande conquista
que representou para o povo francês a sociedade laica. Um dos precursores desse
ideal foi o filósofo Pierre Bayle (1647-1706) que afirmou com rigor a separação
entre moral e religião. Para ele, os ateus não eram piores que os
idólatras. A fim de ilustrar essa ideia
aos leitores, Bayle propunha que imaginassem um ser de outro mundo visitando a
terra. Se lhe dissessem antes da visita que havia em nosso planeta homens que
temiam a Deus, que precisariam viver de forma virtuosa, evitando praticar o mal
para gozar da recompensa divina após a morte, o ser do outro mundo pensaria que
esses homens praticariam o bem, ajudariam o próximo e evitariam o vício. Ora,
tal estrangeiro se surpreenderia com a disparidade entre a crença e os atos. Os
princípios não teriam necessariamente influência sobre as ações, afirma Bayle.
Somos, via de regra, piedosos nas palavras e impiedosos nas ações. Pretendemos
adorar a Deus e seguimos apenas as paixões.
Da mesma forma que há
cristãos ortodoxos que contradizem a palavra de Deus com seus atos, há ateus
que são exemplos de conduta, a título de exemplo, Bayle citava os Antigos.
Os jornalistas do Charlie Hebdo
assassinados no mês passado, embora ateus, eram humanistas voltados e engajados
em questões sociais. O redator Stephane Charbonnier (Charb) defendia os
muçulmanos, o que talvez muitos não saibam.
Vale
acrescentar aqui o que escreveu o jornalista Mustafá Akyol: “Antes da expansão árabe
com base em motivos políticos e do endurecimento da sharia (direito islâmico),
o Alcorão ensinava aos muçulmanos, cuja fé costumava ser objeto de zombaria por
parte dos pagãos: ‘Deus disse no livro que quando vocês ouvirem suas revelações
lançadas no descrédito e objeto de zombaria, não deverão sentar-se com eles,
enquanto não mudarem de conversa; porque seguramente vocês seriam como eles. ’
Essa é a resposta que o Alcorão sugere à zombaria. Não a violência, nem mesmo a
censura.”
O
próprio Alcorão ensina a tolerância e não prega a punição terrena para a blasfêmia.
Surpreende-nos bastante que algumas pessoas julguem o ódio dos terroristas compreensível.
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