sábado, 27 de fevereiro de 2010

Os conselhos de Philidor, o sutil











Em meados do século XVIII, França e Inglaterra assumem a supremacia do xadrez mundial. No famoso café de la Régence em Paris, "hommes de lettres" e diletantes egressos da nobreza, entre discussões filosóficas e literárias, apreciavam as disputas no tabuleiro dos "pousseurs de bois" (empurradores de madeira).Rousseau, na sua juventude, ali aprendeu o movimento das peças e ficou tão empolgado com o jogo que durante três meses dissecou o tratado de Greco, aprendendo-o de cor. O resultado foi desastroso. Enxadrista frustrado, o pensador revela-nos nas Confissões sua falta de aptidão para o xadrez, e amarga o tempo perdido.



Diderot gostava de passar as tardes frias e chuvosas entre as mesas do célebre café, relatando no livro O Sobrinho de Rameau que Paris é o lugar do mundo, e o "café de la Régence" o lugar de Paris onde melhor se joga xadrez. Admirava as jogadas do sólido Mayot, Legal, o profundo, e sobretudo do imbatível François André Danican, conhecido como Philidor, o sutil. Lamentava, porém, que o talento desse jovem músico fosse desperdiçado com um simples jogo. De fato, o pai do xadrez moderno também foi o criador da ópera cômica francesa e, durante mais de dez anos, seu melhor representante. A paixão de Philidor, contudo, era a arte de Caíssa. Venceu seus mais fortes concorrentes e passou a jogar no clube de xadrez de Londres, onde recebia uma pensão regular.


Sua contribuição decisiva no domínio enxadrístico concerne à estratégia. Se hoje um jogador iniciado toma rapidamente consciência das implicações (e dissabores!!) do avanço de um peão, na época de Philidor, e mesmo muito tempo depois dele, essa questão fundamental era ignorada. Ele não só compreendeu o problema, como também expõe a ideia na obra Analyse du Jeu des Échecs.


Em seu prefácio, o autor discorre sobre a longínqua origem do jogo-ciência, relata-nos histórias curiosas (nem sempre verdadeiras) em um tom apologético que trai seu fascínio pelo assunto. Critica outros métodos, desfere golpes mortais contra seus precursores e contemporâneos que por ignorância ou má-fé deturparam as regras levianamente. Não faz justiça ao italiano Gioachino Greco, provavelmente seu mais brilhante antecessor. Com uma arrogância que toca as raias do pedantismo, recomenda seu trabalho como o único digno de estudo.


Perdoemos-lhe a falta de modéstia, afinal, em muitos aspectos, o genial -músico enxadrista tinha razão. Eis a íntegra do prefácio da primeira edição (1749):


Seria inútil dizer muitas coisas para elogiar o jogo de xadrez depois que tantos célebres autores antigos e modernos o fizeram.Dom pietro Carrera brinda-nos, em 1617, com um grosso volume sobre a origem e o progresso desse jogo, oferece-nos, ao mesmo tempo, uma lista que contém um número muito grande de nomes para entrar nas páginas que destinei a este prefácio; citarei, no entanto, alguns dos mais conhecidos do mundo, os quais, segundo ele, elogiaram esse nobre jogo; são: Heródoto, Eurípidis, Sófocles, Filóstrato, Homero, Aristóteles, Sêneca, Platão, Ovídio, Horácio, Quintiliano, Marcial, Vida, etc...

O próprio Carrera demonstra e sustenta de forma convincente que a maior parte dos autores acima e vários outros, atribuem a invenção desse jogo a Palamedes. É verdade que isso contraria a opinião da maioria. Alguns pretendem que o xadrez existiu antes dele, outros asseguram que o filósofo Serse, conselheiro de Amolin, rei da Babilônia, o inventou para distrair este útimo de sua queda natural para a crueldade, ocupando-se com lago de novo, interessante e especulativo. Dizem que os egípcios situaram o xadrez entre as ciências, em uma época em que somente eles o possuíam, sob o princípio: Scientia est eorum quae constitunt in intellectu. Como este jogo ou ciência existe há muito tempo, e que é moralmente impossível de precisar seu inventor, não nos surpreende ver tantas opiniões diferentes a seu respeito; há mesmo alguns teimosos que sustentam que o jogo existe há três séculos. Alguns recuariam um pouco mais se não pudéssemos convencê-los de que, no tesouro rela da Abadia de Saint-Denis, encontra-se ainda hoje o xadrez com o qual o invencível carlos Magno descansava de suas batalhas.

Eurípides, na sua tragédia Efigênia em Áulide nos diz que Ajax e Protésilaus jogavam xadrez em presença de Mérion, de Ulisses e de outros gregos famosos.
Homero, no primeiro livro de sua Odisseia conta-nos que os príncipes amantes de Penélope jogavam xadrez na frente de sua porta, o que deu lugar à tradução de dois versos gregos deste grande poeta, por um excelente autor:



Invenit autem Procos Superbos, qui quidem tum.



Calculis ante Januam animum oblectabant.



Sem querermos confundir-nos com todas essas opiniões diferentes, que dizem respeito à origem do jogo, não podemos discordar de que ele tenha contribuído, há séculos, ao divertimento dos mais famosos heróis da Antiguidade, e de que a maior parte dos de hoje gostem de praticá-lo. A história conta-nos que Charles XII, rei da Suécia, era um príncipe conhecido pela sua virtude e heroísmo. Ele não somente era capaz de resistir a todas as tentações do vício, como também sabia recusar os prazeres da vida humana. Odiava o jogo e o proibia à sua tropa e aos seus súditos. O xadrez, no entanto, era uma honrosa exceção que ele mesmo encorajava pelo gosto e prazer que despertava. Voltaire relata-nos que quando este príncipe, quando esteve em Binder, jogava diariamente com o general Poniatsky, ou com seu tesoureiro Grouthusedn.Como tudo está sujeito à mudança, vejo com pesar que este jogo não conservou totalmente sua pureza, segundo as regras atribuídas por Palamedes; dizem que os gregos o observavam de forma tão estrita que não poderiam admitir um tabuleiro torto. Queriam absolutamente (comparando o jogo a uma batalha) que a torre da direita fosse colocada em uma casa branca, sendo esta cor de bom augúrio entre eles, cada um dos dois combatentes acreditava na vitória colocando esta casa o lado direito. Em diversos lugares da Alemanha, este jogo foi de tal modo desfigurado que podíamos reconhecê-lo somente pela forma do tabuleiro e pelas peças. Primeiro, jogavam-se dois lances seguidos no início da partida. Esse método parece-nos ainda mais ridículo, se pensarmos que não há nenhum jogo em que não se façam jogadas alternadas, cada um à sua vez. Aliás, podemos imaginar uma disputa entre dois bons jogadores. Que chance teria de ganhar uma partida aquele que joga por último? Em segundo lugar, dá-se ao peão o direito de "passer en prise" [N. T. não conheciam a tomada en passant], o que forma não somente um jogo totalmente diferente do verdadeiro, como também diminui muito sua beleza, pois só um peão poderá passar na frente de dois outros, que, com esforço e dificuldade, estariam habilmente instalados a três casas de coroar dama, e que se encontrarão bloqueados pelo rei ou um bispo adversário a concentrar suas forças sobre este miserável que não tem nehummérito e que não fez nada durante a partida. Ora, isso é absolutamente contra as máximas da guerra, na qual só o merecimento pode contribuir ao avanço de um simples soldado. Além disso, quando um rei faz o roque, ele tem o privilégio de avançar ao memso tempo o peão da torre:- neste caso ainda, um jogador faz dois lances seguidos. Na minha opinião, todas essas transformações foram introduzidas por trapaceiros que para levar vantagem, mudavam as regras ao seu bel- prazer. Conheci jogadores que sabiam todo o cabrês [N.T. referência ao tratado de Greco] e outros de cor, e que, após os quatro ou cinco primeiros lances, não tinham noção do que fazer. Ouso afirmar, porém, que os seguidores das regras que exponho aqui, não se encontrarão nunca na mesma situação.Abstive-me de imitar aqueles que não sabendo como preencher suas páginas, rechearam-nas com uma quantidade de posições que não se repetiraõ talvez em mil anos. O aprendiz se contentará, espero, em lhes dar um Modicum et um Bonum útil e instrutivo que

se pode encontrar em todas as partidas. Omito mesmo todos os mates, exceto o de bispo e torre contra uma torre adversária, sendo o amte mais difícil que há. Carrera afirma que este mate pode ser forçado, mas suspeitamos, pelas suas análises, de que ele mesmo não conhecia a maneira de fazê-lo. Meu principal objetivo consiste em me tornar recomendável por uma novidade da qual ninguém até agora se deu conta, ou talvez não tenha sido capaz de perceber. Trata-se de bem jogar os peões. Eles são a alma do xadrez, são eles unicamente que formam o ataque e a defesa, e de sua boa ou má estrutura depende inteiramente a vitória ou a derrota. Um jogador que não sabe (mesmo quando acerta o lance do peão), a razão pela qual joga, é comparável ao general que tem muita prática e pouca teoria. Nas quatro primeiras partidas, veremos, do começo ao fim, um ataque e uma defesa regular dos dois lados. Poderemos aprender pelas reflexões que faço sobre os lances principais, e que parecem os menos inteligíveis, a razão pela qual somos obrigados a jogá-lo, e que, jogando outra coisa, perdemos inevitavelmente a partida. Faço isso por meio de comentários, a fim de melhor demonstrar as razões. Veremos, nos gambitos que este tipo de partida não decide nada a favor daquele que ataca, nem do lado que defende. Minhas análises (que serão mais frequentes, apesar de menos instrutivas, que minhas partidas) provarão isto. O gambito da dama implica inúmeras variantes logo nos primeiros lances ( o que desencorajou muitos autores a tentar dissecá-lo). Contentaram-se de comentar por alto, e de nos dar algumas noções repletas de lances fracos. Gabo-me de ter encontrado a verdadeira defesa. Aqueles que conhecem esta abertura poderão comprovar se tive sucesso.Para terminar, advirto os aprendizes que em todas as minhas análises, indicações, etc... a fim de evitar qualquer equívoco, trato sempre as brancas usando a segunda pessoa e as pretas com a terceira, por exemplo: jogai, tomai, tereis - refiro-me às brancas; e joga, toma, teria tomado, - refiro-me às pretas. Tradução de ALLRBedê do "Préface de la première édition publiée" de 1749". André Danican Philidor. Analyses du Jeu des Échecs. Paris:Librairie Frères, 1871.



NB: Eis as traduções das citações em latim

Scientia est eorum quae constitunt in intellectu A ciência é das coisas que constam do intelecto

Há também os versos da Odisséia de Homero, I, 106-107

"E encontra os soberbos pretendentes, que então, em frente à porta, ocupavam a mente com os peões"

Invenit autem Procos Superbos, qui quidem tum.

Calculis ante Januam animum oblectabant.

do texto Homeri Odyssea et hymni fere omnes graece et latine, Patauii, ex Typographia Seminarii, an.MDCCCXX). Agradeço ao amigo Aristoteles A Predebon que generosamente traduziu os versos de Homero.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Monteiro Lobato e a presença francesa em "A barca de Gleyre"


Nos últimos anos, a obras sobre a produção de Monteiro Lobato vem proporcionando uma revisão em sua fortuna crítica. É nesta linha que Ana Luiza Bedê apresenta a relação do escritor e crítico com a cultura francesa, a partir das cartas endereçadas a Godofredo Rangel e reunidas em A barca de Gleyre. Expressões como "sarna gálica" ou "francesismo", presentes em sua obra, já deram ao autor de Cidades mortas o adjetivo de "anti-galicista". Neste livro, a autora faz uma análise detalhada da correspondência entre Lobato e Rangel para mostrar que os desabafos de Monteiro Lobato "contra" a França tinham na verdade um outro alvo.