sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Câmara de Torturas, aliás Gabinete de Investigações


Para as explicações detalhadas dos motivos que levaram à prisão de Monteiro Lobato e os meses que passou na Casa de Detenção, remeto aos dois primeiros capítulos do segundo volume de Monteiro Lobato: Vida e Obra de Edgar Cavalheiro.
Às 2h30 do dia 20 de março de 1941, o escritor encontrava-se em seu escritório na União Jornalística Brasileira quando lhe entregaram o mandado de prisão preventina. Seu delito: crime contra a Segurança Nacional. Tratava-se de uma resposta de Getúlio Vargas à luta de Lobato para que o petróleo fosse explorado por brasileiros, e uma vingança pessoal pelo fato do escritor ter recusado o convite de sentar-se ao lado do presidente em um jantar em Campinas.

Casa de Detenção, 4, 6, 1941
Dr. Fernando Costa:
Os presos da cadeia não podem ir cumprimentá-lo pela grande vitória que, se enche os "soltos" de alegria, mais ainda o faz a estas pobres vítimas do esquecimento e da crueldade humana. Há aqui cerca de 600 detidos para os quais o seu advento do Poder em São Paulo significa o sol depois de uma semana de chuva. Não pense que isto é engrossamento, porque é justamente por não ter esse hábito que estou aqui entre eles.
É verdade. Os presidentes de S. Paulo se sucedem e nenhum se lembra de corrigir as falhas horrendas dessa coisa monstruosa que se chama Polícia de S.Paulo, com a sua Câmara de Torturas, que se chama Gabinete de Investigações. Foi preciso que eu viesse passar uma temporada aqui entre as vítimas para me convencer da hedionda realidade.
Inda ontem entraram os moços do furto dos 5 mil contos- e quem os viu chegar sentiu engrouvinhamento do coração. Eram espectros que se arrastavam, tontos, bobos, idiotizados- tantas foram as torturas que lhes infligiram no famoso e infame Gabinete. E entre os presos comuns tenho visto sinais horríveis- mãos com cicatrizes de rachaduras feitas pelas palmatórias do Gabinete. O preto Cotrim, um inocente absolvido pelo Júri, mas mesmo assim aqui detido há dois anos, mostra a quem quer ver os colhões rachados pela borracha do Gabinete. E há o suplício de meter cunhas de taquara nas unhas. E há os que ficaram ou foram postos nus nos ergástulos de lá, cubículos de metro quadrado ou pouco mais, onde tinham de ficar de braços para o ar para caber e depois, baldes d´água em cima, e vidros de amoníaco. Não tem fim, Fernando, a lista dos horrores desse nefando Gabinete. E há o suplício das muquiranas, em que esses nojentos bichos criados no Gabinete quase devoram os pacientes. Um homem aqui da administração me disse textualmente de uma de suas vítimas: "quando o rapaz chegou aqui, semimorto, a roupa que tiramos do corpo dele mexia-se no chão- andava..."
Muitos chegam e vão para a enfermaria- para morrer.
Ora, não me consta que haja alguma lei autorizando a aplicação de torturas no Brasil. E se não há essa lei, então esses atos constituem monstruosos crimes da polícia. A solução tem que entrar neste dilema: ou a polícia suspende as torturas, ou então o Estado Novo as legaliza. Ficar assim como está é que é impossível, no futuro Governo de Fernando Costa. Nós, seus amigos e amigos de S. Paulo, mesmo presos, nos esforçamos para que a coisa mude- e eu me faço voz de todas estas miseráveis vítimas. Pelo amor de Deus, Dr. Fernando, reforme este tumor maligno que já vem durando muito.
Há um corregedor encarregado de fiscalizar as prisões, mas costuma avisar com uma semana de antecedência as suas visitas, de modo que encontra tudo perfeito. No dia do Corregedor ir espiar o Gabinete, os carrascos transferem para aqui carradas de vítimas- que voltam logo que o Corregedor sai e assina a ata de que tudo estava perfeito.
Uma visita sua, inesperada, absolutamente inesperada ao Gabinete há de revelar coisa, apesar de estarem eles práticos em fazer como as casas de tavolagem clandestinas, em que as roletas e tudo o mais desaparecem como por encanto, quando a polícia chega.
Eu dou por bem aproveitada a minha prisão, só pelo fato de me permitir verificar o medievalismo da polícia de S.Paulo.
Aqui na Detenção já é coisa outra. O diretor que saiu, Dr. Sílvio Sampaio, era um homem de bem e profundamente humano. Acabou com o terrível regime anterior, dum tal Cata Preta, que ao que ouvi aqui era carrasco integral. E o medo desta pobre gente aqui já tão desgraçada, é que esse carrasco volte. Mas um Fernando Costa jamais admitirá semelhante coisa.
Não tem grande importância este ou aquele diretor de um serviço qualquer aí fora. Mas tem uma importância imensa a escolha acertada dum diretor de prisão, porque dele depende a felicidade de 600 desgraçados e das respectivas famílias. Isto vai grifado, porque é da maior relevância. A solução ideal aqui é a efetivação do atual diretor interino, Dr. Nelson Gomes, um homem que pela humanidade, bom critério, honestidade e espírito de justiça se impôs à minha admiração. Não há ninguém aqui, desde o último preso até o último vigilante, que não pense deste modo quanto ao Dr. Nelson. Se ele for efetivado, a Casa de Detenção se sentirá feliz e neste setor a administração Fernando Costa não terá dores de cabeça. A unanimidade pró Dr. Nelson é absoluta.
O Queirós está ao par de tudo e é seu amigo. Não é dos tais que só são amigos do interventor. É amigo do homem Fernando Costa, e não do Interventor Fernando Costa. Atenda-o sempre como uma das bocas de verdade, que não errará.
Os homens que sobem pela primeira vez ao Governo, deslumbram-se e deixam-se envolver pela malta dos bajuladores- e esquecem os verdadeiros amigos, os que dizem a verdade ali no duro. Mas não creio que isso se dê com quem já foi governo várias vezes e, portanto, aprendeu a conhecer a safadeza dos homens.
Faço votos, portanto, para que não erre-porque se o Ademar (1) tinha direito de errar na apreciação da entourage, visto como era marinheiro de primeira viagem, um homem já com tantas passagens pelo Poder não tem. E não errará, enquanto puder distinguir os verdadeiros amigos das muquiranas da amizade, enquanto distinguir um Queirós dum puxa-saco qualquer. Adeus, meu caro amigo. E viva S. Paulo.
Do
Monteiro Lobato
Recomendo também o texto "A Prisão de Monteiro Lobato" de Hilário Freire e Waldemar Medrado Dias, disponível no site da Ordem dos Advogados do Brasil-Seção de São Paulo. http://www.oabsp.org.br/institucional/grandes-causas/a-prisao-de-monteiro-lobato

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Não esperem livrar-se dos livros!

Umberto Eco, Jean-Claude Carrière.
Não contem com o fim do livro
Tradução de André Telles
Editora Record, Rio de Janeiro, São Paulo-2010, 269 p.

Há mais de uma década, Umberto Eco depara-se com a questão: a internet acabará com os livros? Em 2003, por ocasião da reinauguração da biblioteca de Alexandria, o escritor respondeu aos apocalípticos que o livro continuaria existindo. O fato de a mídia alardear seu fim, explicou Eco, serviria, sobretudo, para criar notícia, já que não se costuma anunciar algo bom, como "a saúde do presidente da República continua ótima".
Recentemente, as dúvidas relativas à extinção do livro mais uma vez vieram à tona e inspiraram uma instigante conversa entre Eco e Jean-Claude Carrière que resultou em Não contem com o fim do livro, lançado em maio no Brasil. Nesta obra, o escritor italiano e o dramaturgo francês dialogam sobre as consequências da tecnologia no cotidiano dos pesquisadores, professores e leitores leigos de maneira geral, assim como as vantagens e dissabores dos excessos de informação, o destino das bibliotecas e a relação do poder com a literatura, para citar alguns temas tratados.
Eco argumenta a favor do livro, afirmando que o suporte para a leitura não pode ser apenas o computador, porque ao cabo de algumas horas, "os olhos viram bolas de tênis"; além disso, com esta máquina, não podemos ler deitados na cama ou em uma banheira. Pior ainda, ficamos na mão se faltar eletricidade . O escritor defende que o "livro é como a colher, o martelo, a roda ou a tesoura. Uma vez inventados, não podem ser aprimorados". Obviamente que também reconhece a importância da tecnologia, por exemplo, no caso de um magistrado que leva as 25 mil páginas de um processo na memória de um e-book, suporte, todavia, inviável para ler Guerra e Paz.
Sem desconsiderar os benefícios dos recursos eletrônicos para os trabalhos intelectuais, somos invariavelmente acometidos pela angustiante necessidade de aprender o manejo de novos softwares. Há algumas décadas, dedicavam-se meses para aprender a andar de bicicleta, mas esta bagagem, explica-nos Eco, era válida para sempre; hoje em períodos curtíssimos, vemo-nos obrigados a abandonar determinadas tecnologias por serem obsoletas. Confrontamo-nos, assim, com a diluição do presente.
Se pensarmos nas utilidades da internet, não há como negar a facilidade de obter informações. Ora, aqui um cuidado se impõe: a seleção. Eco frisa que cultura, digna desse nome, reside na capacidade de sabermos empregar nossos conhecimentos. Recebe, neste ponto, o apoio de Carrière, que esclarece a diferença entre saber e conhecimento na língua francesa: "O saber é tudo com que somos entupidos e que nem sempre tem uma utilidade. O conhecimento é a transformação de um saber numa experiência de vida".
Ainda sobre o tema da "seleção", o dramaturgo francês ressalta que somos educados por meio de filtragens feitas antes de nós; nada impede, porém, que as contestemos. A título de exemplo, cita que os maiores poetas franceses, em sua opinião, não constam dos manuais de literatura. Trata-se dos barrocos libertinos do século XVII: Jean de Lacépède, Jean-Baptiste Chassignet, Claude Hopil e Pierre de Marbeuf.
Eco e Carrière, ao longo do diálogo, não se limitam a apontar prós e contras da tecnologia, de um lado e a ressaltar as prerrogativas do livro, de outro- os autores contam-nos a saga do livro, falam-nos de suas paixões, suas manias e preferências.
Não esqueceram de José Mindlin- que nos deixou 28 de fevereiro último - e sua odisseia para obter um dos exemplares da primeira edição de O guarani. De fato, o eminente bibliófilo tinha descoberto que um diletante europeu possuía o tal exemplar. Marcaram um encontro em Paris e após três dias de discussões no Hotel Ritz, Mindlin voltou a São Paulo observando os detalhes da recente aquisição. Ao chegar a sua residência, notou que tinha esquecido o exemplar no avião. Curiosamente, a constatação da perda não provocou nenhuma frustração, tampouco a restituição do objeto perdido resultou em alívio -consistindo o encanto do colecionador nas andanças para obter o que deseja.
Interrogados sobre que sonhos nutriam como amantes de livros, Eco respondeu que gostaria de possuir um exemplar da Bíblia de Gutenberg, também apreciaria se encontrassem as tragédias perdidas citadas por Aristóteles na Poética, Carrière ficaria felicíssimo se descobrissem um códice maia.
Os autores comentaram sobre as marcas deixadas pelas leituras, sobre as interpretações que as obras recebem ao longo dos anos e como influenciam nossas opiniões. Ressaltaram, igualmente, os embaraços domésticos e o momento vivido como fatores relevantes na construção do sentido do que lemos. Eco oferece-nos um bom exemplo do alcance das sucessivas interpretações sobre o destino de uma obra: "Hamlet não é uma obra-prima por suas qualidades literárias; é porque ela resiste a diversas interpretações que se tornou uma obra-prima. Às vezes basta pronunciar palavras insensatas para passar à posteridade".
Quando passam a discutir sobre livros antigos como testemunhos do passado, ambos demonstram desconfiança. Muitas vezes, esclarecem-nos, não são os livros que se equivocam, mas os delírios interpretativos dos leitores que contribuem para os mais gritantes equívocos. Aconselham, então, a não reconstruir o passado a partir de uma única fonte.
As bibliotecas não guardam somente tesouros do saber, mas igualmente bobagens colossais. Neste caso, os autores são enfáticos ao afirmar que não deveríamos valorizar somente os monumentos do espírito, mas também a burrice- muito mais difundida, diga-se de passagem, e altamente reveladora de uma determinada sociedade. Após inúmeras histórias para ilustrar a diferença entre o imbecil, o cretino e o estúpido, Eco e Carrière admitem que estamos sempre à beira de dizer uma estupidez. Chateaubriand, por exemplo, escreve sobre Napoleão, de quem não gostava: "É, com efeito, um grande vencedor de batalhas, mas afora isso, o pior general é mais esperto que ele". Outro exemplo digno de constar em um Dicionário da burrice é a observação do monsenhor Quelén a um público de aristocratas, em Notre-Dame, durante a Restauração: "Não apenas Jesus Cristo era filho de Deus, como era de excelente família pelo lado da mãe."
A variedade de assuntos, a agudeza e a erudição dos bibliófilos prendem o leitor da primeira à última página, um bálsamo para os amantes dos livros. Jean-Philippe de Tonnac, no prefácio, lembra a constatação de Frollo em Notre Dame de Paris de Victor Hugo: "Ceci tuera cela" ("Isto matará aquilo"). Tranquilizemo-nos, o livro eletrônico tão cedo não matará o livro.
(Ana Luiza Reis Bedê)

quinta-feira, 1 de julho de 2010

La Débâcle de Émile Zola


A guerra franco-prussiana de 1870 inspirou romances de diferentes categorias. Georges Darien retratou-a de forma sarcástica em Bas les coeurs! Jules Vallès, levado por seu engajamento, nos revela sua própria experiência em L´insurgé. Maupassant em L´Angelus, romance inacabado, trata do episódio. A obra, porém, de maior fôlego sobre o tema foi sem dúvida o antepenúltimo livro do "Rougon-Macquart", La Débâcle.
Zola documentou-se antes de escrever sobre a derrota do exército francês. Roger Ripoll confirma que o iniciador do naturalismo consultou diversas testemunhas do conflito. No século XIX, a história não representava mais simplesmente um pano de fundo para os romances, mas se tornava protagonista. Zola preconizava que a criação romanesca e a progressão dramática estariam a serviço da história. Em seu Les romanciers Naturalistes, afirma que o romancista afeta "[...] disparaître completement derrière l´action qu´il raconte. Il est le metteur en scène caché du drame. ( "[...] desaparecer completamente atrás da ação narrada. Ele [o romancista] é o diretor de cena escondido atrás do drama.").
Sabemos como em La Débâcle, Zola aproveitou para desenvolver as ideias darwinianas, adotando, igualmente, a famosa teoria do determinismo humano. Fiel à sua teoria naturalista, o líder do grupo de Médan esboça quadros terríveis do cotidiano da vida dos soldados, ricos em minúcias, a fim de demonstrar que tudo se passou da forma descrita. Assim como Daudet e Maupassant, Zola tratou igualmente da questão do patriotismo. Em La Débâcle, um camponês vendia carne podre aos soldados inimigos: "[...] quand on pense qu´il y a des gens qui racontent, comme ça, que je ne suis pas patriote!...Hein? qu´ils en faasent autant, qu´ils leur foutent donc de la carne, et qu´ils empochent leurs sous...Pas patriote!...mais, nom de Dieu! J´en aurai plus tué avec mes vaches malades que bien des soldats avec leurs chassepots".
Do ponto de vista das personagens, os soldados alemães não passariam de "sacrés mangeurs de choucroute", muito semelhantes fisicamente, altos, loiros, de olhos azuis e agindo como autômatos, além de capazes das maiores crueldades.
Se o alvo privilegiado constitui o exército alemão, Zola não poupa o alto escalão do exército francês, cujos comandantes não tinham sequer o mapa da França, já que não acreditavam em uma invasão inimiga, apostando que as lutas se desenrolariam, sobretudo, em solo alemão. Embora mostrasse seus horrores, Zola acreditava que a guerra era inevitável e perfeitamente coerente sob a ótica do evolucionismo.

domingo, 20 de junho de 2010

Alfred Dreyfus: o culpado ideal


No final do século XIX, os franceses têm uma obsessão: reconquistar a Alsácia e a Lorena, que haviam perdido para a Prússia em 1870. Mais do que isso, precisavam recuperar o orgulho ferido durante a ocupação alemã, uma das mais humilhantes impostas a uma nação outrora vencedora. Em 1894, uma ocasião de vingança anuncia-se: os serviços de contra-espionagem francês descobre um documento endereçado ao adido militar da embaixada da Alemanha em Paris. Neste documento, encontram-se informações secretas sobre o material de artilharia francesa. Não interessava ao exército organizar um longo processo a fim de descobrir o responsável pelo vazamento das informações: era necessário encontrar rapidamente um culpado.
Com base na assinatura do dossier comprometedor, concluiu-se que a letra era do capitão Dreyfus, um jovem oficial de 35 anos, judeu, alsaciano, ou seja, aos olhos dos contemporâneos, praticamente um alemão. Feita a análise grafológica, o capitão Dreyfus foi preso por espionagem e declarado culpado de alta traição. Embora protestasse inocência, o capitão foi condenado à degradação e à deportação na Guiana, no forte da Ilha do Diabo. A família Dreyfus, convencida de sua inocência, busca auxílio político para obter a revisão do processo, porém nada consegue (continua).

domingo, 13 de junho de 2010

Vive la France! Alphonse Daudet e a guerra franco prussiana de 1870


O autor dos Contes du Lundi (1873) não se limitou a tratar somente da guerra de 1870, escreveu também sobre seus desdobramentos, como a perda da Alsácia e da Lorena, além da rebelião da população parisiense que resultou na Comuna.
Na maior parte das vezes, Alphonse Daudet ressalta o aspecto patético dos dramas vividos: deixando de lado o que se passa nos campos de batalha, prefere as anedotas sobre a invasão. Assim, a repercussão da guerra no campo e na província é privilegiada.
No conto "La dernière classe" ("A última aula"), por exemplo, M. Hamel ministra sua última aula de francês aos pequenos alsacianos, ciente de que no dia seguinte o curso seria recomeçado em alemão. Não falta humor nesta comovente história sobre a guerra , como se constata no balanço de consciência feito pelo mestre que se sentia culpado por seus alunos conhecerem mal a língua francesa: Moi-même, n´ai-je rien à me reprocher?
Est-ce que je ne vous ai pas souvent fait arroser mon jardin au lieu de travailler? ("Eu mesmo não teria nada a me reprovar? Não mandei vocês várias vezes regar meu jardim em vez de estudar?").
Um tom zombador insinua-se na história do coronel Jouve, um cuirassier (soldado de um regimento de cavalaria) do Primeiro Império que é fulminado pela notícia da derrota de Napoleão III. Este conto ilustra bem a confiança do povo no exército imperial, parecendo-lhe inverossímil a hipótese de um fracasso. A neta do coronel Jouve, para poupar-lhe a saúde, engana-lhe afirmando que os franceses haviam invadido a Alemanha. O velho combatente, porém, descobre a verdade ao escutar a marcha triunfal de Schubert sob o Arco do Triunfo.
Talvez, o mais tocante exemplo de patriotismo-no melhor sentido do termo- de Contes du Lundi seja o do conto "L´enfant espion": um senhor envergonhado vai devolver o dinheiro que seu filho ganhou traindo os interesses da França.
Constatamos que as maiores demonstrações de amor ao país vêm de pequenos empregados e camponeses, os menos informados da sociedade e o mais influenciados pelo governo imperial - a repercussão da guerra, nessa parte da população, ofereceu ao autor- uma grande riqueza de temas. Alphonse Daudet, a seu modo, foi um crítico mordaz da guerra franco-prussiana, sem se render ao pessimismo do grupo de Médan.

sábado, 15 de maio de 2010

O irascível enxadrista Voltaire


O patriarca desafiava algumas das visitas que recebia em Ferney para disputar uma partida de xadrez. Em maio de 1760, um de seus hóspedes, assim comentava em uma carta endereçada a Marmontel: "Gaulard poliment joue aux échecs avec Voltaire qui adore ce jeu, mais a horeur de perdre. Goulard sait perdre, aussi Voltaire le trouve-t-il pleins de qualités." ("Gaulard joga educadamente com Voltaire que adora este jogo, mas tem horror de perder, por isso Voltaire o considera cheio de qualidades.")

O parceiro favorito de Voltaire era o padre Adam. Em carta datada de 12 de fevereiro de 1764, lemos: "Je les aime [les échecs] je me passionne et le père Adam qui est une bête m´y gagne sans cesse, sans pitié! Tout a des bornes!pourquoi suis-je aux échecs et pour lui le dernier des hommes?Tout a des bornes..." ("Gosto muito, sou fascinado por xadrez e o pai Adam, que é uma besta, ganha de mim sem parar, sem piedade! Tudo tem limites!").

quarta-feira, 28 de abril de 2010

"...não lhe demos repouso nem trégua, gritemos-lhe sem parar Calas!, Calas!"


Em seu castelo de Ferney, Voltaire dedicava parte do tempo à revisão de sua obra, além dos projetos de novos livros. Aconselhava jovens escritores e dava, com frequência, palpites na política de outros países. Esse labor, aliado à fama de poeta e dramaturgo, contribuiu para criar um mito em torno de sua personalidade. Pierre Lepape, no livro Voltaire: nascimento dos intelectuais no século das Luzes, explica " A visita a Ferney tornou-se uma espécie de gênero literário. O tom dos relatos podia ser de frustração ou zombaria - como no caso do décimo capítulo das Memórias de Casanova e de trechos das memórias de Mme de Genlis - porém, o mais frequente era que fosse de piedosa exaltação" (p.269).

Em 1762, quando seus inimigos respiravam apostando em sua aposentadoria, comemoravam a notícia de sua morte que, vez por outra, divulgavam, enquanto seus amigos se inquietavam com os rebates falsos relativos ao seu desaparecimento, eis que o esquelético e banguela anfitrião de Ferney recebe a visita de Audibert, importante homem de negócios de Marselha que lhe narra o processo dos Calas. No dia 13 de outubro de 1761, Marc-Antoine Calas, de vinte e oito anos, fora encontrado morto no primeiro andar da residência onde morava com seus pais em Toulouse. Ao cabo de um inquérito espúrio, a polícia e o Parlamento condenaram Jean Calas, o pai da vítima, à pena capital. O crime teria sido motivado pela suposta intenção de Marc-Antoine de converter-se ao catolicismo. Na manhã do dia 10 de março de 1762, após sessões de tortura, Jean Calas é amarrado em forma de cruz numa roda. Com golpes de barra de ferro, os carrascos quebram os braços e as pernas do réu. Ao cabo de duas horas de agonia, morreu sem abjurar a religião protestante, afirmando sua inocência.
O célebre pensador comove-se com a história e resolve intervir. Toma a iniciativa de investigar o caso e contribui com importante soma para contratar os melhores advogados da França, entre os quais, Élie de Beaumont e Mallard. Em carta endereçada ao amigo d´Argental, Voltaire expressa sua confiança: "[...] je crois qu´il faut que MM.Beaumont et Mallard fassent brailler en notre faveur tout l´ordre des avocats, et que de bouche en bouche, on fasse tinter les oreilles du chancelier, qu´on ne lui donne ni repos, ni trêve, qu´on lui crie toujours Calas! Calas!" ("acredito que é necessário que os senhores Beaumont e Mallard mandem toda Ordem de Advogados gritar em nosso favor, e que de boca em boca, façamos tinir nas orelhas do ministro da justiça, não lhe demos repouso nem trégua, gritemos-lhe sem parar Calas! Calas!").
Em 9 de março de 1765, três anos após sua execução, Jean Calas é reabilitado pelo tribunal "Les Rêquetes de l´hôtel". Voltaire emociona-se com a notícia e, escreve à viúva Anne-Rose Calas em 17 de março de 1765: "Vous devez, Madame, être accablée de lettres et de visites. Genève est comme Paris, il bat des mains à vos juges." ("deveis, senhora, estar coberta de cartas e visitas. Genebra, assim como Paris, bate palmas ao juízes").

domingo, 18 de abril de 2010

Um filósofo franzino, doente, entre este e o outro mundo


François-Marie Arouet, dit Voltaire, nasceu dia 21 de novembro de 1694 provavelmente em Châtenay, arredores de Paris. Por ser um menininho muito franzino, sua morte antes de completar um mês era dada como certa, exatamente o mesmo destino de inúmeros recém-nascidos durante o reino de Luís XIV.
A família providencia o batismo e, em seguida, deixa-lhe a cargo de uma ama de leite, que cuidará do pequeno François em um andar separado dos familiares. Não havia nessa atitude nenhuma desumanidade dos pais do menino-agiam de acordo com os costumes da época. Aceitava-se a morte de um recém-nascido como a de um idoso e, assim, só restava esperar.
Durante alguns dias, o prognóstico fúnebre parece confirmar-se. A ama ia todas as manhãs prevenir a mãe que seu filhinho agonizava. O desfecho tardava a ocorrer, até que um dos amigos da família, o abade Châteauneuf, interessou-se pelo pequeno moribundo, fazendo-lhe visitas diárias e tomando as providências necessárias para mantê-lo vivo.
Durante a infância, a adolescência e boa parte da juventude, Voltaire gozou de boa saúde. A julgar por sua correspondência, a primeira carta na qual se percebe que algo o incomoda data de 1722. Em 1723, responde à madame de Bernières que, devido à dor de garganta, não pode enviar uma carta longa. Ainda neste ano, a petite vérole (sífilis) aflige-o, como a muitos parisienses.
Aos poucos, Voltaire esboça a imagem de moi-chétif, um autor de constituição fraca. As moléstias aparecem, sobretudo, nos períodos de dificuldades materiais. Problemas com os credores? Eis o poeta febril- daí uma expressão que aparece amiúde em suas cartas: ma santé et mes affaires ("minha saúde e meus negócios"). Com a saúde definhando, define-se como ayant toujours un pied dans le cercueil, et l´autre faisant des gambades ("tendo sempre um pé na cova e outro dando cambalhotas").
Em 1760, aos sessenta e cinco anos, compra um castelo na cidade de Ferney, um vilarejo no leste da França, onde poderia trabalhar tranquilamente e à vontade para driblar a polícia política. Com inúmeros projetos em andamento, reclamava dos dias curtos demais: Ah comme le temps vole! Les hommes vivent trop peu. À peine a-t-on fait deux douzaines de pièces de théâtre qu´il faut partir-28 de dezembro 1760 ("Ah, como o tempo voa! Os homens vivem pouquíssimo. Mal fizemos duas dúzias de peças de teatro e é necessário partir").
O "urso da montanha" ou "cego dos Alpes", conforme se autodenominava, queixava-se de vários tipos de afecções oculares, como conjuntivites, terçóis e "oftalmia das neves" que quase o cegava durante o inverno. Vivia às voltas com insônia crônica, zumbidos no ouvido, gota e distúrbios digestivos. Tinha, ocasionalmente, acidentes isquêmicos cerebrais e insuficiência urinária. Devido ao escorbuto, sofria de uma anemia profunda. Dr. Tronchin, médico de renome internacional, controlava esses e outros achaques.
Não nos surpreende que tal precariedade de saúde provocasse boatos sobre sua morte. O primeiro deles foi em 1756, seguiram os de 1758, 1760 e 1776, quando contava oitenta e dois anos. Os desafetos espalhavam que o patriarca havia morrido, mas tinham esquecido de enterrá-lo.
Enfraquecido, o grande homem faz a extenuante viagem a Paris para a estreia de sua peça Irene, ocasião em que é aclamado pelo público. As emoções das homenagens o debilitam ainda mais, encontra-se entre a vida e a morte. Desta vez não era rebate falso, expirou no dia 30 de maio de 1778, vítima de câncer na bexiga: contava oitenta e três anos, seis meses e dez dias. Na autópsia, M. Try, cirurgião, retirou-lhe o cérebro- que foi conservado graças às técnicas empregadas pelo farmacêutico Mitouart, que, aliás tornou-se célebre graças a essa intervenção. O marquês de Villete, em cuja residência Voltaire faleceu, quis o coração do filósofo, deixando-o em um quarto no castelo de Ferney, comprado pelo marquês. De volta a Paris, em 1783, o marquês de Villette leva o coração para sua residência. Em 11 de julho de 1791, por ocasião do translado dos restos mortais de Voltaire ao Panteão, o cortejo solene fez uma pausa diante do hôtel de Villete, em cuja fachada se lê em grandes letras Son esprit est partout et son coeur est ici ("seu espírito está em toda parte, seu coração está aqui").

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Le bon sens aux échecs

A seguir, transcrevo a sequência da primeira conferência de Emanuel Lasker publicada no livro Le bon sens aux échecs.
Uma outra melodia sobre o mesmo refrão.
1.e4 e5
2.Cf3 Cf6
3.Cxe5 Cc6
As pretas são adeptas do desenvolvimento rápido e recusam tomar o peão a fim de ganhar tempo.
4.Cxc6 dxc6
5.d3 Bc5
6.Bg5
Um erro grave: as brancas poderiam impedir a ameaça Cg4 com Be2. Agora aguardam a catástrofe.
... Cxe4
7.Bxd8 Bxfe+
8. Re2 Bg4++
Outra variante.
1.e4 e5
2.f4 exf4
As brancas, para facilitar seu desenvolvimento, sacrificam um peão. Não discutiremos, no momento, se elas têm ou não razão.
3.Bc4 Dh4+
4.Rf1 d5
Um lance excelente. As pretas sacrificam igualmente um peão a fim de desenvolver mais facilmente suas peças.
5.Bxd5 g5
6.Cf3 Dh5
7.h4
Um bom lance que confere à torre alguma função. No entanto, o ataque do peão preto é apenas aparente no momento porque o cavalo e o peão h4 estão cravados.
7... h6
As pretas deveriam desenvolver uma peça, por exemplo Bg7. Esta omissão lhe custará caro.
8. Bxf7 Dxf7 ( Se 8... Rxf7, 9.Ce5+)
9.Ce5 Dg7
10.Dh5+ Re7
11.Cg6+ Rd8
12.Cxh8 Dxh8
13.hxg5
E agora temos dois peões e uma torre admiravelmente bem colocada por duas peças, enquanto as pretas têm ainda todas as suas peças em casa e seu rei em uma posição perigosa. Entre jogadores da mesma força, o resultado da partida será favorável às brancas. ( continua- tradução ALRBedê).



domingo, 4 de abril de 2010

Albert Camus: entre Lourmarin e o Panteão


Entre 1935 e 1937, Camus foi membro do Partido ComunistaFrancês, do qual se desligou por discordar da estratégia adotada em relação à Argélia. Continuou sua militância política no Alger Républicain, para o qual escrevia também sobre literatura e questões judiciárias. Seus escritos contribuíram para a libertação de acusados.
Em 1939, avaliou mal o perigo nazista e não apoiou a Guerra. Nesta altura era editor do Le Soir Républicain, que foi banido em 1940. Volta para a Argélia onde escreve romances e ensaios que o consagrarão definitivamente. Em 1942, Pascal Pia convence o editor da Gallimard a publicar O Estrangeiro, o romance tornou-se rapidamente um best-seller. Ainda neste ano, sai o Mito de Sísifo pelo mesmo editor. Neste ensaio, lemos "o único problema filosófico verdadeiramente sério é o suicídio", introduzindo sua explanação sobre o "sentimento do absurdo". Camus aceita retirar o capítulo sobre Kafka para atender ao embaixador alemão na França ocupada, Otto Abetz, censor contumaz de autores considerados perigosos.
Ao contrário de certa visão idealizadora, tudo indica que Camus voltou à França em 1942 para tratar da tuberculose e somente depois entrou para a Resistência. Tal dado biográfico pouco altera a relevância de sua luta contra a violência, a tortura e a pena de morte.
Em 1957, ganhou o Nobel de literatura. Seu discurso de 14 dezembro daquele ano em Estocolmo tornou-se uma referência na crítica literária. Trata-se de uma belíssima reflexão sobre "o artista e seu tempo".
Em quatro de janeiro de 1960, vai a Paris de carona com um membro da família Gallimard. Em Villeblevin, o carro desgovernou-se, chocando-se contra uma árvore. Camus morreu na hora. Entre seus pertences, havia o manuscrito inacabado de O Primeiro Homem.
Recentemente, o presidente da França propôs a "panteonização" do escritor. Situado no monte Sainte-Geneviève no V arrondissement em Paris, o Panteão abriga, entre outros, os restos mortais de Victor Hugo, Émile Zola, Pasteur, além de um memorial dedicado a Jean Moulin, herói da Resistência, cujo corpo não foi encontrado. A iniciativa de Nicolas Sarkosy causou espanto entre os familiares de Camus. Um de seus filhos alertou para o oportunismo do chefe do Eliseu: antípoda de tudo que o autor argelino defendia. Mesmo sabendo que ficaria bem acompanhado ao lado de Rousseau e Voltaire, tão independentes e contestadores quanto ele, certamente o autor de A Peste preferiria continuar descansando sob o sol da Provence, na tranquila e charmosa Lourmarin.

quinta-feira, 25 de março de 2010

O Livro dos Mandarins: ironia e suspense no instigante romance de Ricardo Lísias

Paulo, diretor de desenvolvimento de um banco, redige uma carta de intenções para obter o posto no projeto China. Paula, secretária limitada que provavelmente nunca irá muito longe, ajuda-o nessa tarefa encontrando forças ao olhar a foto do sobrinho. Desde a infância, Paulo reclama de uma dor nas costas, caminhando do baço à coluna vertebral, do ombro direito ao esquerdo- a solução para tal incômodo talvez se encontrasse na terra do Grande Timoneiro.


O inquieto protagonista redige um livro destinado aos homens de negócios. Poderíamos reunir seus conselhos em um novo Dicionário de ideias feitas. De fato, a maneira de Flaubert, faz uma crítica corrosiva ao senso comum que nos escraviza intelectualmente sem nos darmos conta disso. Assim, orientava os futuros executivos sobre a fidelidade e o segredo corporativos, a vantagem de enviar instruções por e-mail, mantendo uma cópia de tudo, além de evitar falatório entre colaboradores, a importância de contar com uma equipe afinada, cada membro estando ciente de suas responsabilidades, ou ainda "/.../ o bom profissional, aliás, o melhor de todos, é aquele que sabe reconhecer suas carências e, portanto, não vacila ao pedir ajuda enquanto se fortalece". Continuam, ao longo do romance, as prescrições para manter uma imagem perante o mercado.
Em narrativa na qual não faltam humor, ironia, mistério e suspense, o romance envolve-nos em uma trama de subentendidos. O leitor sorri descobrindo a desfaçatez da personagem protagonista, obcecada em tornar-se o homem de confiança do chefe todo-poderoso. Ao longo dos capítulos, desnudam-se, de forma cáustica, não apenas o mundo corporativo, como também nosso meiozinho social desprovido de relações duráveis. Vive-se a angústia de destacar-se a qualquer preço- em detrimento da própria identidade.
Nessa empreitada de grande fôlego, Ricardo Lísias brinda o leitor com um texto intrigante e ousado, provocando certo mal-estar que persiste ao fim da leitura.
O Livro dos Mandarins. Ricardo Lísias, Rio de Janeiro, Objetiva, 2009.
Ana Luiza Reis Bedê

domingo, 21 de março de 2010

Um enxadrista nas horas vagas





Monteiro Lobato costumava jogar xadrez com o futuro sogro enquanto esperava Purezinha. As cartas endereçadas ao escritor mineiro Godofredo Rangel revelam que além de discutir muita literatura, os dois amigos jogavam por correspondência. Infelizmente não consegui reconstituir nenhuma partida reunindo os lances dispersos ao longo das missivas. O grande especialista Edgar Cavalheiro, autor de Monteiro Lobato: Vida e Obra, conta-nos que o autor de Urupês, como aliás todo enxadrista, não gostava de perder. Quando percebia que o adversário ia ganhar uma peça, voltava o lance. Ora, não sejamos tão exigentes, em partidas entre amigos, a desobediência às regras é frequente e perfeitamente tolerável se admitida para ambos os lados.

Recomendo a leitura de "A facada imortal", do livro Negrinha. No início, o narrador faz referência a André Danican Philidor, músico e enxadrista do século XVIII e considerado pai do xadrez moderno. Trata-se de um conto primoroso, considerado obra-prima do gênero!

segunda-feira, 15 de março de 2010

"Se perdió el nombre de este siglo allí..."


















"El ajedrez es un educador del raciocinio y que los países que tienen los mejores equipos de ajedrecistas son tambíen los que marchan a la cabeza del mundo en otras esferas".






Há inúmeras citações exaltando o fascínio que o jogo de xadrez exerce sobre nós, frases laudatórias que ressaltam ora o aspecto pedagógico do jogo, ora as emoções que alguns lances nos proporcionam. Poucas, a meu ver, são tão contundentes como a frase que introduz este texto. Seu autor desapareceu há quarenta e dois anos, assassinado no interior da Bolívia. "El comandante" não apenas incentivava a prática deste esporte, como foi ele próprio exímio enxadrista.

sábado, 13 de março de 2010

A carreira obscura de músicos decadentes: Quand j ´étais chanteur (2006) e Crazy Heart (2009)
















Chegando à casa dos sessenta, vivendo de pequenos shows para plateias de bingos, boates, salões de baile e boliches país afora. Às vezes tendo uma participação rápida em espetáculos de algum ídolo. A paixão repentina por uma jovem independente, livre e mãe de um garoto de quatro anos- da noite pro dia tudo se transforma. Eis, de forma resumida, a trama da produção francesa de Xavier Giannoli com Gérard Depardieu e do filme de Scott Cooper estrelado por Jeff Bridges.


Depardieu é Alain Moreau, cantor de músicas sentimentais que faz sucesso entre sessentões. Em uma de suas apresentações em casas noturnas, conhece Marion (Cécile de France), corretora de imóveis. Vale a pena ver as atuações de Depardieu e France. Em uma das cenas eles dançam tango: sensualidade à flor da pele.

No filme de Scott Cooper, Bad Blake, compositor e cantor de música country, outrora famoso, vive franca decadência devido ao alcoolismo. No final de um show, conhece a jornalista Jean (Maggie Gyllehaal) e aqui também a vida não será mais a mesma. Entre as inúmeras cenas inesquecíveis, destaco o momento em que Bad Blake canta acompanhado do discípulo bem sucedido Tommy Sweet (Colin Farrel).
O filme de Giannoli passou praticamente despercebido por aqui. Acredito que o de Cooper também não fique muito tempo em cartaz. Uma pena, as duas produções são tocantes, excelentes, imperdíveis!






sexta-feira, 12 de março de 2010

Os cavalos pretos de Napoleão!


Se é verdade que grandes estrategistas tornaram-se bons jogadores de xadrez, o general Bonaparte, futuro imperador da França, não corresponde a essa propalada ideia. Vejamos sua conhecida partida contra a inofensiva adversária Madame de Remusat. O então cônsul não precisou muito esforço para dar xeque-mate após um patético périplo do Rei Branco pelo tabuleiro. Confiram!
Brancas: Madame de Remusat
Pretas: Napoleão Bonaparte
Paris, 1802
1. e4 Cf6 2. d3 Cc6 3. f4 e5 4. fxe5 Cxe5 5. Cc3 Cfg4 6. d4 Dh4+ 7. g3 Df6 8. Ch3 Cf3, 9. Re2 Cxd4+ 9. Re2 Cxd4+ 10. Rd3 Ce5+ 11. Rxd4 Bc5+ 12. Rxc5 Db6+ 13. Rd5 Db6++

domingo, 7 de março de 2010

O enxadrista Karl Marx, não percam...


Na próxima semana postarei uma partida do filósofo alemão!
Vale a pena!

O sétimo selo: filme enigmático de Bergman


Em O sétimo selo (1956), o cavaleiro medieval Antonius Block recebe a visita da Morte e resolve disafiá-la para uma partida de xadrez.

Machado de Assis e a paixão pelo xadrez


Sabemos que Machado de Assis era um dos mais fortes enxadristas brasileiros do século XIX. Frequentava o Club Polytechnico onde enfrentou adversários como Arthur Napoleão e o visconde de Pirapetinga. Talvez poucos saibam que Machado também publicou um problema de xadrez na Illustração Brasileira. Vejam o diagrama ao lado:
As brancas jogam e dão mate em dois lances!!

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Os conselhos de Philidor, o sutil











Em meados do século XVIII, França e Inglaterra assumem a supremacia do xadrez mundial. No famoso café de la Régence em Paris, "hommes de lettres" e diletantes egressos da nobreza, entre discussões filosóficas e literárias, apreciavam as disputas no tabuleiro dos "pousseurs de bois" (empurradores de madeira).Rousseau, na sua juventude, ali aprendeu o movimento das peças e ficou tão empolgado com o jogo que durante três meses dissecou o tratado de Greco, aprendendo-o de cor. O resultado foi desastroso. Enxadrista frustrado, o pensador revela-nos nas Confissões sua falta de aptidão para o xadrez, e amarga o tempo perdido.



Diderot gostava de passar as tardes frias e chuvosas entre as mesas do célebre café, relatando no livro O Sobrinho de Rameau que Paris é o lugar do mundo, e o "café de la Régence" o lugar de Paris onde melhor se joga xadrez. Admirava as jogadas do sólido Mayot, Legal, o profundo, e sobretudo do imbatível François André Danican, conhecido como Philidor, o sutil. Lamentava, porém, que o talento desse jovem músico fosse desperdiçado com um simples jogo. De fato, o pai do xadrez moderno também foi o criador da ópera cômica francesa e, durante mais de dez anos, seu melhor representante. A paixão de Philidor, contudo, era a arte de Caíssa. Venceu seus mais fortes concorrentes e passou a jogar no clube de xadrez de Londres, onde recebia uma pensão regular.


Sua contribuição decisiva no domínio enxadrístico concerne à estratégia. Se hoje um jogador iniciado toma rapidamente consciência das implicações (e dissabores!!) do avanço de um peão, na época de Philidor, e mesmo muito tempo depois dele, essa questão fundamental era ignorada. Ele não só compreendeu o problema, como também expõe a ideia na obra Analyse du Jeu des Échecs.


Em seu prefácio, o autor discorre sobre a longínqua origem do jogo-ciência, relata-nos histórias curiosas (nem sempre verdadeiras) em um tom apologético que trai seu fascínio pelo assunto. Critica outros métodos, desfere golpes mortais contra seus precursores e contemporâneos que por ignorância ou má-fé deturparam as regras levianamente. Não faz justiça ao italiano Gioachino Greco, provavelmente seu mais brilhante antecessor. Com uma arrogância que toca as raias do pedantismo, recomenda seu trabalho como o único digno de estudo.


Perdoemos-lhe a falta de modéstia, afinal, em muitos aspectos, o genial -músico enxadrista tinha razão. Eis a íntegra do prefácio da primeira edição (1749):


Seria inútil dizer muitas coisas para elogiar o jogo de xadrez depois que tantos célebres autores antigos e modernos o fizeram.Dom pietro Carrera brinda-nos, em 1617, com um grosso volume sobre a origem e o progresso desse jogo, oferece-nos, ao mesmo tempo, uma lista que contém um número muito grande de nomes para entrar nas páginas que destinei a este prefácio; citarei, no entanto, alguns dos mais conhecidos do mundo, os quais, segundo ele, elogiaram esse nobre jogo; são: Heródoto, Eurípidis, Sófocles, Filóstrato, Homero, Aristóteles, Sêneca, Platão, Ovídio, Horácio, Quintiliano, Marcial, Vida, etc...

O próprio Carrera demonstra e sustenta de forma convincente que a maior parte dos autores acima e vários outros, atribuem a invenção desse jogo a Palamedes. É verdade que isso contraria a opinião da maioria. Alguns pretendem que o xadrez existiu antes dele, outros asseguram que o filósofo Serse, conselheiro de Amolin, rei da Babilônia, o inventou para distrair este útimo de sua queda natural para a crueldade, ocupando-se com lago de novo, interessante e especulativo. Dizem que os egípcios situaram o xadrez entre as ciências, em uma época em que somente eles o possuíam, sob o princípio: Scientia est eorum quae constitunt in intellectu. Como este jogo ou ciência existe há muito tempo, e que é moralmente impossível de precisar seu inventor, não nos surpreende ver tantas opiniões diferentes a seu respeito; há mesmo alguns teimosos que sustentam que o jogo existe há três séculos. Alguns recuariam um pouco mais se não pudéssemos convencê-los de que, no tesouro rela da Abadia de Saint-Denis, encontra-se ainda hoje o xadrez com o qual o invencível carlos Magno descansava de suas batalhas.

Eurípides, na sua tragédia Efigênia em Áulide nos diz que Ajax e Protésilaus jogavam xadrez em presença de Mérion, de Ulisses e de outros gregos famosos.
Homero, no primeiro livro de sua Odisseia conta-nos que os príncipes amantes de Penélope jogavam xadrez na frente de sua porta, o que deu lugar à tradução de dois versos gregos deste grande poeta, por um excelente autor:



Invenit autem Procos Superbos, qui quidem tum.



Calculis ante Januam animum oblectabant.



Sem querermos confundir-nos com todas essas opiniões diferentes, que dizem respeito à origem do jogo, não podemos discordar de que ele tenha contribuído, há séculos, ao divertimento dos mais famosos heróis da Antiguidade, e de que a maior parte dos de hoje gostem de praticá-lo. A história conta-nos que Charles XII, rei da Suécia, era um príncipe conhecido pela sua virtude e heroísmo. Ele não somente era capaz de resistir a todas as tentações do vício, como também sabia recusar os prazeres da vida humana. Odiava o jogo e o proibia à sua tropa e aos seus súditos. O xadrez, no entanto, era uma honrosa exceção que ele mesmo encorajava pelo gosto e prazer que despertava. Voltaire relata-nos que quando este príncipe, quando esteve em Binder, jogava diariamente com o general Poniatsky, ou com seu tesoureiro Grouthusedn.Como tudo está sujeito à mudança, vejo com pesar que este jogo não conservou totalmente sua pureza, segundo as regras atribuídas por Palamedes; dizem que os gregos o observavam de forma tão estrita que não poderiam admitir um tabuleiro torto. Queriam absolutamente (comparando o jogo a uma batalha) que a torre da direita fosse colocada em uma casa branca, sendo esta cor de bom augúrio entre eles, cada um dos dois combatentes acreditava na vitória colocando esta casa o lado direito. Em diversos lugares da Alemanha, este jogo foi de tal modo desfigurado que podíamos reconhecê-lo somente pela forma do tabuleiro e pelas peças. Primeiro, jogavam-se dois lances seguidos no início da partida. Esse método parece-nos ainda mais ridículo, se pensarmos que não há nenhum jogo em que não se façam jogadas alternadas, cada um à sua vez. Aliás, podemos imaginar uma disputa entre dois bons jogadores. Que chance teria de ganhar uma partida aquele que joga por último? Em segundo lugar, dá-se ao peão o direito de "passer en prise" [N. T. não conheciam a tomada en passant], o que forma não somente um jogo totalmente diferente do verdadeiro, como também diminui muito sua beleza, pois só um peão poderá passar na frente de dois outros, que, com esforço e dificuldade, estariam habilmente instalados a três casas de coroar dama, e que se encontrarão bloqueados pelo rei ou um bispo adversário a concentrar suas forças sobre este miserável que não tem nehummérito e que não fez nada durante a partida. Ora, isso é absolutamente contra as máximas da guerra, na qual só o merecimento pode contribuir ao avanço de um simples soldado. Além disso, quando um rei faz o roque, ele tem o privilégio de avançar ao memso tempo o peão da torre:- neste caso ainda, um jogador faz dois lances seguidos. Na minha opinião, todas essas transformações foram introduzidas por trapaceiros que para levar vantagem, mudavam as regras ao seu bel- prazer. Conheci jogadores que sabiam todo o cabrês [N.T. referência ao tratado de Greco] e outros de cor, e que, após os quatro ou cinco primeiros lances, não tinham noção do que fazer. Ouso afirmar, porém, que os seguidores das regras que exponho aqui, não se encontrarão nunca na mesma situação.Abstive-me de imitar aqueles que não sabendo como preencher suas páginas, rechearam-nas com uma quantidade de posições que não se repetiraõ talvez em mil anos. O aprendiz se contentará, espero, em lhes dar um Modicum et um Bonum útil e instrutivo que

se pode encontrar em todas as partidas. Omito mesmo todos os mates, exceto o de bispo e torre contra uma torre adversária, sendo o amte mais difícil que há. Carrera afirma que este mate pode ser forçado, mas suspeitamos, pelas suas análises, de que ele mesmo não conhecia a maneira de fazê-lo. Meu principal objetivo consiste em me tornar recomendável por uma novidade da qual ninguém até agora se deu conta, ou talvez não tenha sido capaz de perceber. Trata-se de bem jogar os peões. Eles são a alma do xadrez, são eles unicamente que formam o ataque e a defesa, e de sua boa ou má estrutura depende inteiramente a vitória ou a derrota. Um jogador que não sabe (mesmo quando acerta o lance do peão), a razão pela qual joga, é comparável ao general que tem muita prática e pouca teoria. Nas quatro primeiras partidas, veremos, do começo ao fim, um ataque e uma defesa regular dos dois lados. Poderemos aprender pelas reflexões que faço sobre os lances principais, e que parecem os menos inteligíveis, a razão pela qual somos obrigados a jogá-lo, e que, jogando outra coisa, perdemos inevitavelmente a partida. Faço isso por meio de comentários, a fim de melhor demonstrar as razões. Veremos, nos gambitos que este tipo de partida não decide nada a favor daquele que ataca, nem do lado que defende. Minhas análises (que serão mais frequentes, apesar de menos instrutivas, que minhas partidas) provarão isto. O gambito da dama implica inúmeras variantes logo nos primeiros lances ( o que desencorajou muitos autores a tentar dissecá-lo). Contentaram-se de comentar por alto, e de nos dar algumas noções repletas de lances fracos. Gabo-me de ter encontrado a verdadeira defesa. Aqueles que conhecem esta abertura poderão comprovar se tive sucesso.Para terminar, advirto os aprendizes que em todas as minhas análises, indicações, etc... a fim de evitar qualquer equívoco, trato sempre as brancas usando a segunda pessoa e as pretas com a terceira, por exemplo: jogai, tomai, tereis - refiro-me às brancas; e joga, toma, teria tomado, - refiro-me às pretas. Tradução de ALLRBedê do "Préface de la première édition publiée" de 1749". André Danican Philidor. Analyses du Jeu des Échecs. Paris:Librairie Frères, 1871.



NB: Eis as traduções das citações em latim

Scientia est eorum quae constitunt in intellectu A ciência é das coisas que constam do intelecto

Há também os versos da Odisséia de Homero, I, 106-107

"E encontra os soberbos pretendentes, que então, em frente à porta, ocupavam a mente com os peões"

Invenit autem Procos Superbos, qui quidem tum.

Calculis ante Januam animum oblectabant.

do texto Homeri Odyssea et hymni fere omnes graece et latine, Patauii, ex Typographia Seminarii, an.MDCCCXX). Agradeço ao amigo Aristoteles A Predebon que generosamente traduziu os versos de Homero.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Monteiro Lobato e a presença francesa em "A barca de Gleyre"


Nos últimos anos, a obras sobre a produção de Monteiro Lobato vem proporcionando uma revisão em sua fortuna crítica. É nesta linha que Ana Luiza Bedê apresenta a relação do escritor e crítico com a cultura francesa, a partir das cartas endereçadas a Godofredo Rangel e reunidas em A barca de Gleyre. Expressões como "sarna gálica" ou "francesismo", presentes em sua obra, já deram ao autor de Cidades mortas o adjetivo de "anti-galicista". Neste livro, a autora faz uma análise detalhada da correspondência entre Lobato e Rangel para mostrar que os desabafos de Monteiro Lobato "contra" a França tinham na verdade um outro alvo.