sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Câmara de Torturas, aliás Gabinete de Investigações


Para as explicações detalhadas dos motivos que levaram à prisão de Monteiro Lobato e os meses que passou na Casa de Detenção, remeto aos dois primeiros capítulos do segundo volume de Monteiro Lobato: Vida e Obra de Edgar Cavalheiro.
Às 2h30 do dia 20 de março de 1941, o escritor encontrava-se em seu escritório na União Jornalística Brasileira quando lhe entregaram o mandado de prisão preventina. Seu delito: crime contra a Segurança Nacional. Tratava-se de uma resposta de Getúlio Vargas à luta de Lobato para que o petróleo fosse explorado por brasileiros, e uma vingança pessoal pelo fato do escritor ter recusado o convite de sentar-se ao lado do presidente em um jantar em Campinas.

Casa de Detenção, 4, 6, 1941
Dr. Fernando Costa:
Os presos da cadeia não podem ir cumprimentá-lo pela grande vitória que, se enche os "soltos" de alegria, mais ainda o faz a estas pobres vítimas do esquecimento e da crueldade humana. Há aqui cerca de 600 detidos para os quais o seu advento do Poder em São Paulo significa o sol depois de uma semana de chuva. Não pense que isto é engrossamento, porque é justamente por não ter esse hábito que estou aqui entre eles.
É verdade. Os presidentes de S. Paulo se sucedem e nenhum se lembra de corrigir as falhas horrendas dessa coisa monstruosa que se chama Polícia de S.Paulo, com a sua Câmara de Torturas, que se chama Gabinete de Investigações. Foi preciso que eu viesse passar uma temporada aqui entre as vítimas para me convencer da hedionda realidade.
Inda ontem entraram os moços do furto dos 5 mil contos- e quem os viu chegar sentiu engrouvinhamento do coração. Eram espectros que se arrastavam, tontos, bobos, idiotizados- tantas foram as torturas que lhes infligiram no famoso e infame Gabinete. E entre os presos comuns tenho visto sinais horríveis- mãos com cicatrizes de rachaduras feitas pelas palmatórias do Gabinete. O preto Cotrim, um inocente absolvido pelo Júri, mas mesmo assim aqui detido há dois anos, mostra a quem quer ver os colhões rachados pela borracha do Gabinete. E há o suplício de meter cunhas de taquara nas unhas. E há os que ficaram ou foram postos nus nos ergástulos de lá, cubículos de metro quadrado ou pouco mais, onde tinham de ficar de braços para o ar para caber e depois, baldes d´água em cima, e vidros de amoníaco. Não tem fim, Fernando, a lista dos horrores desse nefando Gabinete. E há o suplício das muquiranas, em que esses nojentos bichos criados no Gabinete quase devoram os pacientes. Um homem aqui da administração me disse textualmente de uma de suas vítimas: "quando o rapaz chegou aqui, semimorto, a roupa que tiramos do corpo dele mexia-se no chão- andava..."
Muitos chegam e vão para a enfermaria- para morrer.
Ora, não me consta que haja alguma lei autorizando a aplicação de torturas no Brasil. E se não há essa lei, então esses atos constituem monstruosos crimes da polícia. A solução tem que entrar neste dilema: ou a polícia suspende as torturas, ou então o Estado Novo as legaliza. Ficar assim como está é que é impossível, no futuro Governo de Fernando Costa. Nós, seus amigos e amigos de S. Paulo, mesmo presos, nos esforçamos para que a coisa mude- e eu me faço voz de todas estas miseráveis vítimas. Pelo amor de Deus, Dr. Fernando, reforme este tumor maligno que já vem durando muito.
Há um corregedor encarregado de fiscalizar as prisões, mas costuma avisar com uma semana de antecedência as suas visitas, de modo que encontra tudo perfeito. No dia do Corregedor ir espiar o Gabinete, os carrascos transferem para aqui carradas de vítimas- que voltam logo que o Corregedor sai e assina a ata de que tudo estava perfeito.
Uma visita sua, inesperada, absolutamente inesperada ao Gabinete há de revelar coisa, apesar de estarem eles práticos em fazer como as casas de tavolagem clandestinas, em que as roletas e tudo o mais desaparecem como por encanto, quando a polícia chega.
Eu dou por bem aproveitada a minha prisão, só pelo fato de me permitir verificar o medievalismo da polícia de S.Paulo.
Aqui na Detenção já é coisa outra. O diretor que saiu, Dr. Sílvio Sampaio, era um homem de bem e profundamente humano. Acabou com o terrível regime anterior, dum tal Cata Preta, que ao que ouvi aqui era carrasco integral. E o medo desta pobre gente aqui já tão desgraçada, é que esse carrasco volte. Mas um Fernando Costa jamais admitirá semelhante coisa.
Não tem grande importância este ou aquele diretor de um serviço qualquer aí fora. Mas tem uma importância imensa a escolha acertada dum diretor de prisão, porque dele depende a felicidade de 600 desgraçados e das respectivas famílias. Isto vai grifado, porque é da maior relevância. A solução ideal aqui é a efetivação do atual diretor interino, Dr. Nelson Gomes, um homem que pela humanidade, bom critério, honestidade e espírito de justiça se impôs à minha admiração. Não há ninguém aqui, desde o último preso até o último vigilante, que não pense deste modo quanto ao Dr. Nelson. Se ele for efetivado, a Casa de Detenção se sentirá feliz e neste setor a administração Fernando Costa não terá dores de cabeça. A unanimidade pró Dr. Nelson é absoluta.
O Queirós está ao par de tudo e é seu amigo. Não é dos tais que só são amigos do interventor. É amigo do homem Fernando Costa, e não do Interventor Fernando Costa. Atenda-o sempre como uma das bocas de verdade, que não errará.
Os homens que sobem pela primeira vez ao Governo, deslumbram-se e deixam-se envolver pela malta dos bajuladores- e esquecem os verdadeiros amigos, os que dizem a verdade ali no duro. Mas não creio que isso se dê com quem já foi governo várias vezes e, portanto, aprendeu a conhecer a safadeza dos homens.
Faço votos, portanto, para que não erre-porque se o Ademar (1) tinha direito de errar na apreciação da entourage, visto como era marinheiro de primeira viagem, um homem já com tantas passagens pelo Poder não tem. E não errará, enquanto puder distinguir os verdadeiros amigos das muquiranas da amizade, enquanto distinguir um Queirós dum puxa-saco qualquer. Adeus, meu caro amigo. E viva S. Paulo.
Do
Monteiro Lobato
Recomendo também o texto "A Prisão de Monteiro Lobato" de Hilário Freire e Waldemar Medrado Dias, disponível no site da Ordem dos Advogados do Brasil-Seção de São Paulo. http://www.oabsp.org.br/institucional/grandes-causas/a-prisao-de-monteiro-lobato