Foi
em 1764 que o jovem milanês Cesare Beccaria publicou “Dos Delitos e das Penas”,
uma das mais importantes obras do século XVIII da Itália- texto fundamental
para as Luzes na França. Voltaire, Rousseau, Diderot, d´Alembert e Morellet, entre
outros, leram e comentaram o texto inovador. A questão que se colocava logo no
início do livro e que criaria os mais acirrados debates, diz respeito ao
“direito de punir”, cuja justificativa se impunha aos olhos do autor. Na
esteira de Thomas Hobbes, adere ao pressuposto de que em seu estado natural, os
homens viveriam mergulhados na incerteza de uma guerra interminável, advindo,
assim, a necessidade de abdicar de uma parcela da própria liberdade em troca de
segurança: “A agregação dessas mínimas porções [de liberdade] possíveis forma o
direito de punir, tudo o mais é abuso e não justiça [...]” (BECCARIA, 2005, p.
43). Ora, aceitar o “direito de punir” implicava pelo menos quatro consequências.
Primeiro, os magistrados não poderiam aumentar uma pena previamente
estabelecida pelo legislador, já que este representa toda a sociedade unida
pelo contrato social, ao passo que o magistrado representaria apenas uma parte
da sociedade. A segunda consequência diz respeito à igualdade perante as leis.
Nenhum cidadão, sob qualquer pretexto, poderia eximir-se de cumpri-las. A
terceira concerne a recusa da atrocidade das penas, porque seria contrária à
natureza do próprio contrato social. Por fim, a quarta consequência reside na
impossibilidade do juiz em interpretar as leis. O jovem criminalista esclarece
seu ponto de vista ressaltando que a desordem advinda de uma obediência fiel à
lei é menos perniciosa que a derivada de sua interpretação.
domingo, 22 de junho de 2014
segunda-feira, 16 de junho de 2014
O artigo "Uma velha praga" de Monteiro Lobato
Um dos mais
fascinantes, polêmicos e multifacetados autores brasileiros do século XX foi,
sem dúvida, Monteiro Lobato. O estupendo sucesso da obra infantil do escritor
paulista deixou na sombra sua atuação em outros domínios. O autor de Cidades Mortas esteve à frente de
campanhas sanitárias, batalhou pelo voto direto, revolucionou o mercado
editorial do Brasil e lutou tenazmente pela nossa auto-suficiência em ferro e
em petróleo. Todas essas facetas, e muitas outras, serão exploradas nesse
espaço. Hoje, gostaria de iniciar uma série de postagens para lembrar a construção do emblemático Jeca Tatu e as
controvérsias que gerou. Em
1911, Lobato herda a fazenda Buquira de seu avô, o Visconde de Tremembé, decide
deixar a pacata vida de promotor em Areias a fim de tentar a sorte como
fazendeiro. Interessa-se de fato pela nova função, faz pesquisas sobre como
melhorar a produção de café e milho. Também estuda a respeito do cruzamento de
animais. Ao longo dos meses, porém, nota que seus esforços se deparam com um
inimigo tenaz: o homem do campo. Em vez de respeitar a terra que lhe dá o
alimento, o caboclo perpetua prática institucionalizada no interior paulista-
as queimadas. Aos poucos a terra vai se tornando infértil. Segundo o ponto de vista do então fazendeiro,
o homem do campo não faz grandes esforços por julgar que não vale a pena. Assim,
prefere permanecer com seu chapéu de palha, de cócoras, fumando cachimbo. Lobato compara-o ao cogumelo
parasitário da madeira podre, denominado por sua mãe de “urupês”. Em 1914, envia
o artigo “A velha praga” ao jornal O Estado
de São Paulo. Nesse texto, apresenta o homem da roça: “Este funesto
parasita da terra é o CABOCLO, espécie de homem baldio, seminômade, inadaptável
à civilização, mas que vive à beira dela na penumbra das zonas fronteiriças. À
medida que o progresso vem chegando com a via férrea, o italiano, o arado, a
valorização da propriedade, vai ele refugindo em silêncio, com o seu cachorro,
o seu pilão, a pica-pau e o isqueiro, de modo a sempre conservar-se
fronteiriço, mudo e sorna. Encoscorado numa rotina de pedra, recua para não
adaptar-se.” Na excelente biografia “Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia” de
Carmen Lucia de Azevedo, Marcia Camargos e Vladimir Sacchetta, lemos: “Monteiro
Lobato é, acima de tudo, arguto crítico social, um homem preocupado com os
destinos do seu país. E expõe, sem mistificação, a conduta do agente deletério,
habitante das zonas limítrofes do mundo civilizado, onde jamais logra penetrar.
(1997, p. 58). “Uma velha praga” saiu em destaque no Estado de São Paulo e fez enorme sucesso. Veremos os desdobramentos
das polêmicas do incendiário artigo em postagens futuras.
sexta-feira, 6 de junho de 2014
Ecos de Cesare Beccaria na França
No final de 1765, o abade Morellet publicou sua tradução de "Dos Delitos e das Penas". Em carta a Beccaria de fevereiro do ano seguinte, o tradutor desculpa-se pelas alterações que fez na estrutura-nova ordem na distribuição dos capítulos, transferência de frases de uma parte para outra, além de remanejamento de explicações do corpo do texto para notas de rodapé- e justifica: "Creio ter seguido uma forma mais regular, mais fácil para os leitores de meu país e mais próxima ao aspecto de nossos livros" ("Je crois avoir suivi une marche plus régulière, plus aisée à suivre, et qui en tout est plus conforme au moins au génie de ma nation, et à la tournure de nos livres"). Em seguida, afirma que o resultado final tinha agradado aos amigos d´Alembert, Diderot e Hume. De fato, a tradução francesa foi tão apreciada que se tornou uma espécie de "vulgata".
A obra, que chegava a um público mais vasto, graças à tradução, fora saudada como contribuição fundamental para as discussões sobre o papel do Estado na vida dos cidadãos. Tratava-se de uma exposição densa e instigante, composta de quarenta e sete capítulos curtos, nos quais o criminalista discutia os tipos de delitos mais frequentes e propunha a forma de puni-los e evitá-los. O livro versava, igualmente, sobre os diferentes tipos de provas e formas de julgamento, sobre as acusações secretas, as questões relacionadas à honra, infâmia, duelos, contrabando, ociosidade, entre outros temas. E condenava a tortura e a pena de morte, que eram institucionalizadas no Antigo Regime. Vislumbrava-se, na obra, a preocupação em atender aos interesses da maioria- ponto basilar da análise beccariana- e não mais aos caprichos de uma casta. Além disso, o autor defendia com veemência que um código penal deveria estar ao alcance de todos porque quanto maior o número de cidadãos que compreendessem as leis, menos frequentes seriam os delitos. A partir de uma reflexão sobre as três fontes dos princípios morais e políticos reguladores dos homens, quais sejam: a revelação, a lei natural e as convenções factíveis da sociedade- que não deveriam entrar em contradição entre si-Beccaria ratifica a ideia de que a justiça divina e a justiça natural são, por sua própria essência, imutáveis e constantes, ao passo que a justiça humana estaria sempre sujeita às mudanças. Quando se discute a matéria pública, explica-nos, esses princípios não podem ser confundidos, sob pena de chegarmos a conclusões equivocadas. O filósofo constata, ainda, o desinteresse do público e dos pensadores a respeito da crueldade das penas e assevera que as leis nunca tinham sido ditadas por um observador imparcial da natureza humana; tem consciência, assim, de que seu livro representa uma etapa inovadora na jurisprudência. ( Nos próximos dias voltarei a escrever sobre o atualíssimo livro de Beccaria publicado em 1764. O filósofo e criminalista italiano contava apenas 27 anos. Duzentos e cinquenta anos após a primeira edição, os debates sobre a obra continuam acalorados).
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