sexta-feira, 6 de junho de 2014

Ecos de Cesare Beccaria na França

No final de 1765, o abade Morellet publicou sua tradução de "Dos Delitos e das Penas". Em carta a Beccaria de fevereiro do ano seguinte, o tradutor desculpa-se pelas alterações que fez na estrutura-nova ordem na distribuição dos capítulos, transferência de frases de uma parte para outra, além de remanejamento de explicações do corpo do texto para notas de rodapé- e justifica: "Creio ter seguido uma forma mais regular, mais fácil para os leitores de meu país e  mais próxima ao aspecto de nossos livros" ("Je crois avoir suivi une marche plus régulière, plus aisée à suivre, et qui en tout est plus conforme au moins au génie de ma nation, et  à la tournure de nos livres"). Em seguida, afirma que o resultado final tinha agradado aos amigos d´Alembert, Diderot e Hume. De fato, a tradução francesa foi tão apreciada que se tornou uma espécie de "vulgata".
A obra, que chegava a um público mais vasto, graças à tradução, fora saudada como contribuição fundamental para as discussões sobre o papel do Estado na vida dos cidadãos. Tratava-se de uma exposição densa e instigante, composta de quarenta e sete capítulos curtos, nos quais o criminalista discutia os tipos de delitos mais frequentes e propunha a forma de puni-los e evitá-los. O livro versava, igualmente, sobre os diferentes tipos de provas e formas de julgamento, sobre as acusações secretas, as questões relacionadas à honra, infâmia, duelos, contrabando, ociosidade, entre outros temas. E condenava a tortura e a pena de morte, que eram institucionalizadas no Antigo Regime. Vislumbrava-se, na obra, a preocupação em atender aos interesses da maioria- ponto basilar da análise beccariana- e não mais aos caprichos de uma casta. Além disso, o autor defendia com veemência que um código penal deveria estar ao alcance de todos porque quanto maior o número de cidadãos que compreendessem as leis, menos frequentes seriam os delitos. A partir de uma reflexão sobre as três fontes dos princípios morais e políticos reguladores dos homens, quais sejam: a revelação, a lei natural e as convenções factíveis da sociedade- que não deveriam entrar em contradição entre si-Beccaria ratifica a ideia de que a justiça divina e a justiça natural são, por sua própria essência, imutáveis e constantes, ao passo que a justiça humana estaria sempre sujeita às mudanças. Quando se discute a matéria pública, explica-nos, esses princípios não podem ser confundidos, sob pena de chegarmos a conclusões equivocadas. O filósofo constata, ainda, o desinteresse do público e dos pensadores a respeito da crueldade das penas e assevera que as leis nunca tinham sido ditadas por um observador imparcial da natureza humana; tem consciência, assim, de que seu livro representa uma etapa inovadora na jurisprudência. ( Nos próximos dias voltarei a escrever sobre o atualíssimo livro de Beccaria publicado em 1764. O filósofo e criminalista italiano contava apenas 27 anos. Duzentos e cinquenta anos após a primeira edição, os debates sobre a obra continuam acalorados).   


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