quinta-feira, 8 de julho de 2010

Não esperem livrar-se dos livros!

Umberto Eco, Jean-Claude Carrière.
Não contem com o fim do livro
Tradução de André Telles
Editora Record, Rio de Janeiro, São Paulo-2010, 269 p.

Há mais de uma década, Umberto Eco depara-se com a questão: a internet acabará com os livros? Em 2003, por ocasião da reinauguração da biblioteca de Alexandria, o escritor respondeu aos apocalípticos que o livro continuaria existindo. O fato de a mídia alardear seu fim, explicou Eco, serviria, sobretudo, para criar notícia, já que não se costuma anunciar algo bom, como "a saúde do presidente da República continua ótima".
Recentemente, as dúvidas relativas à extinção do livro mais uma vez vieram à tona e inspiraram uma instigante conversa entre Eco e Jean-Claude Carrière que resultou em Não contem com o fim do livro, lançado em maio no Brasil. Nesta obra, o escritor italiano e o dramaturgo francês dialogam sobre as consequências da tecnologia no cotidiano dos pesquisadores, professores e leitores leigos de maneira geral, assim como as vantagens e dissabores dos excessos de informação, o destino das bibliotecas e a relação do poder com a literatura, para citar alguns temas tratados.
Eco argumenta a favor do livro, afirmando que o suporte para a leitura não pode ser apenas o computador, porque ao cabo de algumas horas, "os olhos viram bolas de tênis"; além disso, com esta máquina, não podemos ler deitados na cama ou em uma banheira. Pior ainda, ficamos na mão se faltar eletricidade . O escritor defende que o "livro é como a colher, o martelo, a roda ou a tesoura. Uma vez inventados, não podem ser aprimorados". Obviamente que também reconhece a importância da tecnologia, por exemplo, no caso de um magistrado que leva as 25 mil páginas de um processo na memória de um e-book, suporte, todavia, inviável para ler Guerra e Paz.
Sem desconsiderar os benefícios dos recursos eletrônicos para os trabalhos intelectuais, somos invariavelmente acometidos pela angustiante necessidade de aprender o manejo de novos softwares. Há algumas décadas, dedicavam-se meses para aprender a andar de bicicleta, mas esta bagagem, explica-nos Eco, era válida para sempre; hoje em períodos curtíssimos, vemo-nos obrigados a abandonar determinadas tecnologias por serem obsoletas. Confrontamo-nos, assim, com a diluição do presente.
Se pensarmos nas utilidades da internet, não há como negar a facilidade de obter informações. Ora, aqui um cuidado se impõe: a seleção. Eco frisa que cultura, digna desse nome, reside na capacidade de sabermos empregar nossos conhecimentos. Recebe, neste ponto, o apoio de Carrière, que esclarece a diferença entre saber e conhecimento na língua francesa: "O saber é tudo com que somos entupidos e que nem sempre tem uma utilidade. O conhecimento é a transformação de um saber numa experiência de vida".
Ainda sobre o tema da "seleção", o dramaturgo francês ressalta que somos educados por meio de filtragens feitas antes de nós; nada impede, porém, que as contestemos. A título de exemplo, cita que os maiores poetas franceses, em sua opinião, não constam dos manuais de literatura. Trata-se dos barrocos libertinos do século XVII: Jean de Lacépède, Jean-Baptiste Chassignet, Claude Hopil e Pierre de Marbeuf.
Eco e Carrière, ao longo do diálogo, não se limitam a apontar prós e contras da tecnologia, de um lado e a ressaltar as prerrogativas do livro, de outro- os autores contam-nos a saga do livro, falam-nos de suas paixões, suas manias e preferências.
Não esqueceram de José Mindlin- que nos deixou 28 de fevereiro último - e sua odisseia para obter um dos exemplares da primeira edição de O guarani. De fato, o eminente bibliófilo tinha descoberto que um diletante europeu possuía o tal exemplar. Marcaram um encontro em Paris e após três dias de discussões no Hotel Ritz, Mindlin voltou a São Paulo observando os detalhes da recente aquisição. Ao chegar a sua residência, notou que tinha esquecido o exemplar no avião. Curiosamente, a constatação da perda não provocou nenhuma frustração, tampouco a restituição do objeto perdido resultou em alívio -consistindo o encanto do colecionador nas andanças para obter o que deseja.
Interrogados sobre que sonhos nutriam como amantes de livros, Eco respondeu que gostaria de possuir um exemplar da Bíblia de Gutenberg, também apreciaria se encontrassem as tragédias perdidas citadas por Aristóteles na Poética, Carrière ficaria felicíssimo se descobrissem um códice maia.
Os autores comentaram sobre as marcas deixadas pelas leituras, sobre as interpretações que as obras recebem ao longo dos anos e como influenciam nossas opiniões. Ressaltaram, igualmente, os embaraços domésticos e o momento vivido como fatores relevantes na construção do sentido do que lemos. Eco oferece-nos um bom exemplo do alcance das sucessivas interpretações sobre o destino de uma obra: "Hamlet não é uma obra-prima por suas qualidades literárias; é porque ela resiste a diversas interpretações que se tornou uma obra-prima. Às vezes basta pronunciar palavras insensatas para passar à posteridade".
Quando passam a discutir sobre livros antigos como testemunhos do passado, ambos demonstram desconfiança. Muitas vezes, esclarecem-nos, não são os livros que se equivocam, mas os delírios interpretativos dos leitores que contribuem para os mais gritantes equívocos. Aconselham, então, a não reconstruir o passado a partir de uma única fonte.
As bibliotecas não guardam somente tesouros do saber, mas igualmente bobagens colossais. Neste caso, os autores são enfáticos ao afirmar que não deveríamos valorizar somente os monumentos do espírito, mas também a burrice- muito mais difundida, diga-se de passagem, e altamente reveladora de uma determinada sociedade. Após inúmeras histórias para ilustrar a diferença entre o imbecil, o cretino e o estúpido, Eco e Carrière admitem que estamos sempre à beira de dizer uma estupidez. Chateaubriand, por exemplo, escreve sobre Napoleão, de quem não gostava: "É, com efeito, um grande vencedor de batalhas, mas afora isso, o pior general é mais esperto que ele". Outro exemplo digno de constar em um Dicionário da burrice é a observação do monsenhor Quelén a um público de aristocratas, em Notre-Dame, durante a Restauração: "Não apenas Jesus Cristo era filho de Deus, como era de excelente família pelo lado da mãe."
A variedade de assuntos, a agudeza e a erudição dos bibliófilos prendem o leitor da primeira à última página, um bálsamo para os amantes dos livros. Jean-Philippe de Tonnac, no prefácio, lembra a constatação de Frollo em Notre Dame de Paris de Victor Hugo: "Ceci tuera cela" ("Isto matará aquilo"). Tranquilizemo-nos, o livro eletrônico tão cedo não matará o livro.
(Ana Luiza Reis Bedê)

quinta-feira, 1 de julho de 2010

La Débâcle de Émile Zola


A guerra franco-prussiana de 1870 inspirou romances de diferentes categorias. Georges Darien retratou-a de forma sarcástica em Bas les coeurs! Jules Vallès, levado por seu engajamento, nos revela sua própria experiência em L´insurgé. Maupassant em L´Angelus, romance inacabado, trata do episódio. A obra, porém, de maior fôlego sobre o tema foi sem dúvida o antepenúltimo livro do "Rougon-Macquart", La Débâcle.
Zola documentou-se antes de escrever sobre a derrota do exército francês. Roger Ripoll confirma que o iniciador do naturalismo consultou diversas testemunhas do conflito. No século XIX, a história não representava mais simplesmente um pano de fundo para os romances, mas se tornava protagonista. Zola preconizava que a criação romanesca e a progressão dramática estariam a serviço da história. Em seu Les romanciers Naturalistes, afirma que o romancista afeta "[...] disparaître completement derrière l´action qu´il raconte. Il est le metteur en scène caché du drame. ( "[...] desaparecer completamente atrás da ação narrada. Ele [o romancista] é o diretor de cena escondido atrás do drama.").
Sabemos como em La Débâcle, Zola aproveitou para desenvolver as ideias darwinianas, adotando, igualmente, a famosa teoria do determinismo humano. Fiel à sua teoria naturalista, o líder do grupo de Médan esboça quadros terríveis do cotidiano da vida dos soldados, ricos em minúcias, a fim de demonstrar que tudo se passou da forma descrita. Assim como Daudet e Maupassant, Zola tratou igualmente da questão do patriotismo. Em La Débâcle, um camponês vendia carne podre aos soldados inimigos: "[...] quand on pense qu´il y a des gens qui racontent, comme ça, que je ne suis pas patriote!...Hein? qu´ils en faasent autant, qu´ils leur foutent donc de la carne, et qu´ils empochent leurs sous...Pas patriote!...mais, nom de Dieu! J´en aurai plus tué avec mes vaches malades que bien des soldats avec leurs chassepots".
Do ponto de vista das personagens, os soldados alemães não passariam de "sacrés mangeurs de choucroute", muito semelhantes fisicamente, altos, loiros, de olhos azuis e agindo como autômatos, além de capazes das maiores crueldades.
Se o alvo privilegiado constitui o exército alemão, Zola não poupa o alto escalão do exército francês, cujos comandantes não tinham sequer o mapa da França, já que não acreditavam em uma invasão inimiga, apostando que as lutas se desenrolariam, sobretudo, em solo alemão. Embora mostrasse seus horrores, Zola acreditava que a guerra era inevitável e perfeitamente coerente sob a ótica do evolucionismo.