sábado, 5 de março de 2011

Continuação da carta de Lobato a Rangel

Eis a sequência da carta datada de 27 de junho de 1909. Nela, Lobato faz planos com o amigo mineiro e revela sua faceta de crítico literário:
Tenho examinado os últimos livros de contos aperecidos. Nada como quero. O último foi o de Veiga Miranda, que a imprensa elogiou. Uns contos ordeiros, exatamente nos moldes de todos os outros- coisa feita, não saída. Espécie de presepe literário. Aqui um boizinho. Aqui um riozinho. Aqui uma porteirinha para casar com a casinha lá adiante. E agora, uma mulherzinha com um homenzinho de olho nela etc...
O nosso livro de contos será o contrário disso. Todo cheio de novidades, na forma e no entrecho. E nada de amorecos e adulteriozinhos de Paris. Isso já fede. Será como os de Kipling - com paisagem, árvores, céu, passarinhos, negros...Eu gosto muito de negros Rangel. Parecem-me tragédias biológicas. Ser pigmentado, como é tremendo! Já leste A mais bela história do mundo? Impossível novela mais rica de horizontes. Do mesmo grande Kipling traduzi para o Minarete o conto um fato. Prodigioso. História de uma serpente do mar que em consequência de uma erupção vulcânica submarina reventou lá no fundo e veio à tona, escabujando no desespero da "falta de pressão atmosférica", espécie de falta de ar . As serpentes vivem nas grandes profundidades e portanto sob tremendas pressões; trazidas à pressão menor da tona, elas estouram, soltam os pulmões pela boca etc...Não pode haver pintura mais fiel, mais d´après nature dessa serpente marinha que Kipling viu , apesar da serpente do mar ser apenas uma crendice de marinheiro! Ou Kipling ou Maupassant. Não há maiores. Tenho aqui Boule de suif, La main gauche, Clair de lune, Mlle. Fifi, Sur l´eau...Por falar neste: havia uma tradução portuguesa naquela coleção romântica, com uma moça na capa, lendo um livro à luz do lampião, lembra-se? Traduziam o Sur l´eau por Vogando, e parece que foi o único Maupassant que o Tito leu. Sempre que azava ensejo, lá vinha ele: "Como diz Maupassant no Vogando...".
O Ana Karenina, que li agora, ponho-o junto de Guerra e Paz, Lírio do vale de Balzac e Le rouge et le noir de Stendhal. Como é grande Tolstói! Grande como a Rússia.
Mas, voltando ao assunto: a ideia de associar-nos é ótima, porque um escora o outro; dois Bêbados de braços dados têm menos probabilidades de cair. Até no namoro é assim. Quando em meninotes passávamos pela janela da namorada junto com um companheiro, lá passávamos firmes, sem tropicar em pedras inexistentes. Mas se passávamos sozinhos e Ela estava com alguma outra, a orelha nos avermelhava, quente, vinha uma comichão suada na cabeça, o passo perdia o ritmo normal, tornava-se, como dizem os ingleses, Self conscious- e ou a bengalinha nos caía da mão ou era inevitável a topada na pedra inexistente. Se sairmos os dois no mesmo livro, vamo-nos aguentar um ao outro maravilhosamente.
Pode mandar o Queijo. Quanto ao espiritismo, não me preocupo. William Crookes, aquele inglês dos raios catódicos, fez experiências rigorosas e concluiu pela existência duma força mal conhecida que atua de várias formas, e a que ele, por comodidade, dá o nome de força psíquica. Foi do que li o que mais me satisfez- e nisso fiquei, como em filosofia física fiquei na Evolução e na filosofia estética fiquei naquele maravilhoso Vade mecum? Vade tecum! do Nietzsche. Essa força psíquica só agora começa a ser estudada pelos homens de educação científica; antes negavam-na. Outro físico inglês, Oliver Lodge, tem coisas ótimas a respeito, e estuda tais fenômenos com o mesmo rigor com que estuda os fatos físicos. A palavra "sobrenatural" empregada em relação a essas coisas me parece imprópria. O fato de não sabermos uma coisa não a exclui da natureza ou não a põe sobre a natureza. É apenas um aspecto da natureza que ainda não conhecemos. Um dia esses fatos psíquicos, hoje considerados sobrenaturais, estarão conhecidos e fichados, como tantos da química. A "ação de presença", por exemplo, sempre existiu e era um mistério- algo sobrenatural; hoje a ciência dá-lhe o nome de catálise e utiliza-a para efeitos práticos. O feiticeirismo da Idade Média, o ocultismo, o espiritismo, o esoterismo, o eterno pendor do homem para o Mistério, tudo isso implica a existência de qualquer coisa que coexiste ao nosso lado, que certas pessoas pressentem etc. É o au-delà, o "outro mundo", como o mundo da luz solar é "outro-mundo" para o cego, apesar de ser apenas um aspecto um aspecto deste nosso mundo para os que enxergamos. Um sexto sentido parece que vem vindo, como foram vindo os nossos atuais cinco sentidos- e virá um sétimo, um oitavo etc. Evolução. E cada novo sentido nos descortinará um "outro mundo". O médium, que é senão uma criatura em quem o sexto sentido está se denunciando? Um dia todos teremos esse sexto sentido- e adeus, sobrenatural! Um dia os compêndios de física trarão o capítulo novo da metapsíquica, como os compêndios de hoje trazem o capítulo novo da termodinâmica.
O radium, por exemplo. Não nos desvendou todo um "outro mundo"? Há agora o quarto estado da matéria- o radiante. Haverá o quinto- o metapsíquico...
Ando a regalar-me com Macaulay nos Essays. É uma espécie de Rui Barbosa da história e da crítica- e por falar: leu o discurso do Rui saudando o Anatole France? Este o classificou de mais uma bela página acrescentada à literatura francesa- e não o disse por amabilidade porque é mesmo. Rui é positivamente grande como o mar.
E a Careta? Já viu? A melhor coisa que no gênero humorístico já apareceu entre nós. Finíssima.
A minha Marta está considerada a menina mais bonitinha de Areias - e não vai nisto babo de pai. Reação da Natureza. Pai feio, filha bonita. E onde foste cavar esse nome Nelo que deste a teu menino? Mau nome, como o do Lino. Presta-se aos trocadilhos do Tito: "Viu o Lino? , "Descasque esse abacaxi, Nelo". Não louvo o Nelo, como também não louvo o teu "Caim de Nazareth". Caim ainda passa; mas Nazareth lembra nariz constipado . Nome que se associa no som a certas palavras é feio. Não posso ouvir falar em "Corina" sem lembrar do mictório. "João" me sugere "sabão", "feijão". "Cornélio" lembra "corno" etc. Os pais escolhem mau os nomes dos filhos e muitas vezes perpetuam no mundo pequeninas tragédias. Conheço um "Medardo". Uma criadinha lá da casa de meu sogro, sempre que esse Medardo aparecia (era cliente), atrapalhava-se e anunciava-o com o "r'' fora do lugar...
Chega. Adeus.
Lobato

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

The King´s Speech: belíssimo filme de Tom Hooper




Em 1935, as doenças que afligiam George V (Michael Gambon) agravaram-se. O rei morre em janeiro de 1936, quando David (Guy Pearce), primeiro na linha de sucessão, torna-se Eduardo VIII. Seu reinado dura apenas onze meses. Com efeito, Eduardo pretendia casar-se com a americana Wallis Simpson, duas vezes divorciada, algo impensável para a monarquia. Assim, em um discurso proferido em 12 de dezembro de 1936, declarou: Não ignorais as razões que me levaram a renunciar ao trono. Deveis crer em mim quando afirmo que cheguei à conclusão de que seria impossível suportar o pesado fardo de tantas responsabilidades, sem o auxílio e o apoio da mulher a quem amo. Eduardo abdicava da coroa a favor do irmão. Albert Frederick Arthur George, duque de York, será sagrado rei em 12 de maio de 1937 com o nome de George VI, vivido de forma esplêndida por Colin Firth. O rei, porém, era tímido e pressentia as crises que enfrentaria, não se sentindo à altura de sua missão. Há muito sofria de um problema crônico que quase o transformou em misantropo: a disfasia. O envolvente The King´s Speech dirigido por Tom Hooper revela as tentativas de Bertie (apelido do rei) para curar ou, ao menos, melhorar a gaguez, daí a importância de Lionel Logue ( com atuação impecável de Geoffrey Rush), o terapeuta da fala. Os momentos que o monarca e o plebeu passam juntos constituem soberbas cenas de amizade. Excelentes também as atuações de Elisabeth Bowes-Lyon como a rainha Elisabeth (a rainha-mãe ) e de Timothy Spall como Winston Churchill. Vale a pena ver e rever. ana luiza reis bedê.





















segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Projetos de Lobato e Rangel

Transcrevo a primeira parte da carta de Monteiro Lobato ao amigo Godofredo Rangel, datada de 27 de junho de 1909

Das muitas belas coisas propostas não vacilo em aceitar o plano do livro de contos a dois- mas com leves modificações. Em vez de fazê-lo a nossa custa procuraremos editor. Há no Rio um Garnier. Quem sabe se esse Garnier...Com boas cunhas Rangel, acho que podemos interessar um editor. Só em caso contrário editar-nos- emos por conta própria. Minha ideia é que quem se edita por conta própria faz uma coisa antinatural-como entre as mulheres o parir pela barriga, na cesariana. Mas, seja lá como for, proponho esses pontos: 1) Não haver pressa; 2) Apurarmos a forma, de modo que os críticos mais exigentes não descubram nem uma lêndea de pronome mal colocado; 3) Ler um a produção do outro, comentar, criticar, sugerir, vetar; 4) As duas partes conforma-se-ão com as sentenças, mas ficam com o direito de rejeitar o veto; 5) A fatura material do livro será perfeita; prosaboa impressa em papel de embrulho vira carne-seca da fedorenta; champanha em cane ca de lata vira zurrapa. Sempre imaginei o nosso primeiro livro assim ao tipo daquela edição Guillaume do Robert Helmont com desenhos de Myrbach. Podemos lançar mão da bagagem já publicada, depois de devidamente brunida. E também enfiar coisas novas.
Eu ando com umas ideias a me perseguir como certas moscas em dia de calor. Espanto-a e ela volta. Um conto. Um farol com dois faroleiros. O mar sempre a bater nas pedras no enrocamento da torre. A vida solitária dos faloreiros- o isolamento. As aves noturnas que se deuxam cegar pela pela luz dos holofotes e se espedaçam contra os vidros. O objetivo é pintar o mar e as sensações de faroleiros isolados, mas para justificar a pintura ponho um drama qualquer- um mata o outro ou algo assim. Faz uma semana que a ideia me está germinando lá num canteiro da cabeça, qual piolho interno.
Sou partidário do conto, que é como o soneto na poesia. Mas quero contos como os de Maupassant ou Kipling, contos concentrados em que haja drama ou que deixem entrever dramas. Contos com perspectivas. Contos que façam o leitor interromper a leitura e olhar e olhar para um amosca invisível , com olhos grandes parados . Contos-estopins, deflagradores das coisas , das ideias, das imagens, dos desejos, de tudo quanto exista informe e sem expressão de ntro do leitor. E conto que ele possa resumir e contar a um amigo- e que interesse a esse amigo.