quarta-feira, 28 de abril de 2010

"...não lhe demos repouso nem trégua, gritemos-lhe sem parar Calas!, Calas!"


Em seu castelo de Ferney, Voltaire dedicava parte do tempo à revisão de sua obra, além dos projetos de novos livros. Aconselhava jovens escritores e dava, com frequência, palpites na política de outros países. Esse labor, aliado à fama de poeta e dramaturgo, contribuiu para criar um mito em torno de sua personalidade. Pierre Lepape, no livro Voltaire: nascimento dos intelectuais no século das Luzes, explica " A visita a Ferney tornou-se uma espécie de gênero literário. O tom dos relatos podia ser de frustração ou zombaria - como no caso do décimo capítulo das Memórias de Casanova e de trechos das memórias de Mme de Genlis - porém, o mais frequente era que fosse de piedosa exaltação" (p.269).

Em 1762, quando seus inimigos respiravam apostando em sua aposentadoria, comemoravam a notícia de sua morte que, vez por outra, divulgavam, enquanto seus amigos se inquietavam com os rebates falsos relativos ao seu desaparecimento, eis que o esquelético e banguela anfitrião de Ferney recebe a visita de Audibert, importante homem de negócios de Marselha que lhe narra o processo dos Calas. No dia 13 de outubro de 1761, Marc-Antoine Calas, de vinte e oito anos, fora encontrado morto no primeiro andar da residência onde morava com seus pais em Toulouse. Ao cabo de um inquérito espúrio, a polícia e o Parlamento condenaram Jean Calas, o pai da vítima, à pena capital. O crime teria sido motivado pela suposta intenção de Marc-Antoine de converter-se ao catolicismo. Na manhã do dia 10 de março de 1762, após sessões de tortura, Jean Calas é amarrado em forma de cruz numa roda. Com golpes de barra de ferro, os carrascos quebram os braços e as pernas do réu. Ao cabo de duas horas de agonia, morreu sem abjurar a religião protestante, afirmando sua inocência.
O célebre pensador comove-se com a história e resolve intervir. Toma a iniciativa de investigar o caso e contribui com importante soma para contratar os melhores advogados da França, entre os quais, Élie de Beaumont e Mallard. Em carta endereçada ao amigo d´Argental, Voltaire expressa sua confiança: "[...] je crois qu´il faut que MM.Beaumont et Mallard fassent brailler en notre faveur tout l´ordre des avocats, et que de bouche en bouche, on fasse tinter les oreilles du chancelier, qu´on ne lui donne ni repos, ni trêve, qu´on lui crie toujours Calas! Calas!" ("acredito que é necessário que os senhores Beaumont e Mallard mandem toda Ordem de Advogados gritar em nosso favor, e que de boca em boca, façamos tinir nas orelhas do ministro da justiça, não lhe demos repouso nem trégua, gritemos-lhe sem parar Calas! Calas!").
Em 9 de março de 1765, três anos após sua execução, Jean Calas é reabilitado pelo tribunal "Les Rêquetes de l´hôtel". Voltaire emociona-se com a notícia e, escreve à viúva Anne-Rose Calas em 17 de março de 1765: "Vous devez, Madame, être accablée de lettres et de visites. Genève est comme Paris, il bat des mains à vos juges." ("deveis, senhora, estar coberta de cartas e visitas. Genebra, assim como Paris, bate palmas ao juízes").

domingo, 18 de abril de 2010

Um filósofo franzino, doente, entre este e o outro mundo


François-Marie Arouet, dit Voltaire, nasceu dia 21 de novembro de 1694 provavelmente em Châtenay, arredores de Paris. Por ser um menininho muito franzino, sua morte antes de completar um mês era dada como certa, exatamente o mesmo destino de inúmeros recém-nascidos durante o reino de Luís XIV.
A família providencia o batismo e, em seguida, deixa-lhe a cargo de uma ama de leite, que cuidará do pequeno François em um andar separado dos familiares. Não havia nessa atitude nenhuma desumanidade dos pais do menino-agiam de acordo com os costumes da época. Aceitava-se a morte de um recém-nascido como a de um idoso e, assim, só restava esperar.
Durante alguns dias, o prognóstico fúnebre parece confirmar-se. A ama ia todas as manhãs prevenir a mãe que seu filhinho agonizava. O desfecho tardava a ocorrer, até que um dos amigos da família, o abade Châteauneuf, interessou-se pelo pequeno moribundo, fazendo-lhe visitas diárias e tomando as providências necessárias para mantê-lo vivo.
Durante a infância, a adolescência e boa parte da juventude, Voltaire gozou de boa saúde. A julgar por sua correspondência, a primeira carta na qual se percebe que algo o incomoda data de 1722. Em 1723, responde à madame de Bernières que, devido à dor de garganta, não pode enviar uma carta longa. Ainda neste ano, a petite vérole (sífilis) aflige-o, como a muitos parisienses.
Aos poucos, Voltaire esboça a imagem de moi-chétif, um autor de constituição fraca. As moléstias aparecem, sobretudo, nos períodos de dificuldades materiais. Problemas com os credores? Eis o poeta febril- daí uma expressão que aparece amiúde em suas cartas: ma santé et mes affaires ("minha saúde e meus negócios"). Com a saúde definhando, define-se como ayant toujours un pied dans le cercueil, et l´autre faisant des gambades ("tendo sempre um pé na cova e outro dando cambalhotas").
Em 1760, aos sessenta e cinco anos, compra um castelo na cidade de Ferney, um vilarejo no leste da França, onde poderia trabalhar tranquilamente e à vontade para driblar a polícia política. Com inúmeros projetos em andamento, reclamava dos dias curtos demais: Ah comme le temps vole! Les hommes vivent trop peu. À peine a-t-on fait deux douzaines de pièces de théâtre qu´il faut partir-28 de dezembro 1760 ("Ah, como o tempo voa! Os homens vivem pouquíssimo. Mal fizemos duas dúzias de peças de teatro e é necessário partir").
O "urso da montanha" ou "cego dos Alpes", conforme se autodenominava, queixava-se de vários tipos de afecções oculares, como conjuntivites, terçóis e "oftalmia das neves" que quase o cegava durante o inverno. Vivia às voltas com insônia crônica, zumbidos no ouvido, gota e distúrbios digestivos. Tinha, ocasionalmente, acidentes isquêmicos cerebrais e insuficiência urinária. Devido ao escorbuto, sofria de uma anemia profunda. Dr. Tronchin, médico de renome internacional, controlava esses e outros achaques.
Não nos surpreende que tal precariedade de saúde provocasse boatos sobre sua morte. O primeiro deles foi em 1756, seguiram os de 1758, 1760 e 1776, quando contava oitenta e dois anos. Os desafetos espalhavam que o patriarca havia morrido, mas tinham esquecido de enterrá-lo.
Enfraquecido, o grande homem faz a extenuante viagem a Paris para a estreia de sua peça Irene, ocasião em que é aclamado pelo público. As emoções das homenagens o debilitam ainda mais, encontra-se entre a vida e a morte. Desta vez não era rebate falso, expirou no dia 30 de maio de 1778, vítima de câncer na bexiga: contava oitenta e três anos, seis meses e dez dias. Na autópsia, M. Try, cirurgião, retirou-lhe o cérebro- que foi conservado graças às técnicas empregadas pelo farmacêutico Mitouart, que, aliás tornou-se célebre graças a essa intervenção. O marquês de Villete, em cuja residência Voltaire faleceu, quis o coração do filósofo, deixando-o em um quarto no castelo de Ferney, comprado pelo marquês. De volta a Paris, em 1783, o marquês de Villette leva o coração para sua residência. Em 11 de julho de 1791, por ocasião do translado dos restos mortais de Voltaire ao Panteão, o cortejo solene fez uma pausa diante do hôtel de Villete, em cuja fachada se lê em grandes letras Son esprit est partout et son coeur est ici ("seu espírito está em toda parte, seu coração está aqui").

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Le bon sens aux échecs

A seguir, transcrevo a sequência da primeira conferência de Emanuel Lasker publicada no livro Le bon sens aux échecs.
Uma outra melodia sobre o mesmo refrão.
1.e4 e5
2.Cf3 Cf6
3.Cxe5 Cc6
As pretas são adeptas do desenvolvimento rápido e recusam tomar o peão a fim de ganhar tempo.
4.Cxc6 dxc6
5.d3 Bc5
6.Bg5
Um erro grave: as brancas poderiam impedir a ameaça Cg4 com Be2. Agora aguardam a catástrofe.
... Cxe4
7.Bxd8 Bxfe+
8. Re2 Bg4++
Outra variante.
1.e4 e5
2.f4 exf4
As brancas, para facilitar seu desenvolvimento, sacrificam um peão. Não discutiremos, no momento, se elas têm ou não razão.
3.Bc4 Dh4+
4.Rf1 d5
Um lance excelente. As pretas sacrificam igualmente um peão a fim de desenvolver mais facilmente suas peças.
5.Bxd5 g5
6.Cf3 Dh5
7.h4
Um bom lance que confere à torre alguma função. No entanto, o ataque do peão preto é apenas aparente no momento porque o cavalo e o peão h4 estão cravados.
7... h6
As pretas deveriam desenvolver uma peça, por exemplo Bg7. Esta omissão lhe custará caro.
8. Bxf7 Dxf7 ( Se 8... Rxf7, 9.Ce5+)
9.Ce5 Dg7
10.Dh5+ Re7
11.Cg6+ Rd8
12.Cxh8 Dxh8
13.hxg5
E agora temos dois peões e uma torre admiravelmente bem colocada por duas peças, enquanto as pretas têm ainda todas as suas peças em casa e seu rei em uma posição perigosa. Entre jogadores da mesma força, o resultado da partida será favorável às brancas. ( continua- tradução ALRBedê).



domingo, 4 de abril de 2010

Albert Camus: entre Lourmarin e o Panteão


Entre 1935 e 1937, Camus foi membro do Partido ComunistaFrancês, do qual se desligou por discordar da estratégia adotada em relação à Argélia. Continuou sua militância política no Alger Républicain, para o qual escrevia também sobre literatura e questões judiciárias. Seus escritos contribuíram para a libertação de acusados.
Em 1939, avaliou mal o perigo nazista e não apoiou a Guerra. Nesta altura era editor do Le Soir Républicain, que foi banido em 1940. Volta para a Argélia onde escreve romances e ensaios que o consagrarão definitivamente. Em 1942, Pascal Pia convence o editor da Gallimard a publicar O Estrangeiro, o romance tornou-se rapidamente um best-seller. Ainda neste ano, sai o Mito de Sísifo pelo mesmo editor. Neste ensaio, lemos "o único problema filosófico verdadeiramente sério é o suicídio", introduzindo sua explanação sobre o "sentimento do absurdo". Camus aceita retirar o capítulo sobre Kafka para atender ao embaixador alemão na França ocupada, Otto Abetz, censor contumaz de autores considerados perigosos.
Ao contrário de certa visão idealizadora, tudo indica que Camus voltou à França em 1942 para tratar da tuberculose e somente depois entrou para a Resistência. Tal dado biográfico pouco altera a relevância de sua luta contra a violência, a tortura e a pena de morte.
Em 1957, ganhou o Nobel de literatura. Seu discurso de 14 dezembro daquele ano em Estocolmo tornou-se uma referência na crítica literária. Trata-se de uma belíssima reflexão sobre "o artista e seu tempo".
Em quatro de janeiro de 1960, vai a Paris de carona com um membro da família Gallimard. Em Villeblevin, o carro desgovernou-se, chocando-se contra uma árvore. Camus morreu na hora. Entre seus pertences, havia o manuscrito inacabado de O Primeiro Homem.
Recentemente, o presidente da França propôs a "panteonização" do escritor. Situado no monte Sainte-Geneviève no V arrondissement em Paris, o Panteão abriga, entre outros, os restos mortais de Victor Hugo, Émile Zola, Pasteur, além de um memorial dedicado a Jean Moulin, herói da Resistência, cujo corpo não foi encontrado. A iniciativa de Nicolas Sarkosy causou espanto entre os familiares de Camus. Um de seus filhos alertou para o oportunismo do chefe do Eliseu: antípoda de tudo que o autor argelino defendia. Mesmo sabendo que ficaria bem acompanhado ao lado de Rousseau e Voltaire, tão independentes e contestadores quanto ele, certamente o autor de A Peste preferiria continuar descansando sob o sol da Provence, na tranquila e charmosa Lourmarin.