domingo, 8 de fevereiro de 2015

Charlie Hebdo: viva a liberdade de expressão, a irreverência, a sátira, o riso...


                                  “Je ris de ce que je veux, quand je veux »

                                                                                                             Charb

             Como os franceses viveram longos períodos de guerras religiosas, hoje consideram a secularidade uma  conquista fundamental (data de 1905 a lei que estabelece separação entre Igreja e Estado na França). Cada indivíduo escolhe seu credo e tem a liberdade de professá-lo. Nenhuma crença é superior a outra. A laicidade não implica recusar as religiões, mas deixar as decisões administrativas ao Estado.
            Também não foi da noite para o dia que a França alcançou a liberdade de expressão tão prezada hoje no país. A história do povo francês é profundamente marcada por censuras e repressões. Basta lembrarmos-nos do século XVIII, época em que a polícia interceptava correspondências: livros eram apreendidos e as cartas que os acompanhavam eram abertas a vapor e fechadas novamente. Tal expediente era empregado pelo Cabinet Noir.
            Havia todo um sistema de espionagem a fim de abortar qualquer tipo de sedição que estivesse a caminho. Relatórios semanais eram preparados para o chefe de polícia.
            A forma de divulgar as ideias dos filósofos da Ilustração foi a publicação  secreta de textos proibidos. Muitos autores enviavam suas obras ao exterior para serem impressas e mais tarde circularem clandestinamente em terras francesas.
            O Antigo Regime representa um dos inúmeros exemplos de cerceamento da liberdade sofrido pelos gauleses. Todo esse passado de coerção levou-os a valorizar a liberdade de exprimir o próprio pensamento, fazer piadas, charges, enfim, de rir do que quiser, quando quiser. Essa liberdade tem limite: qualquer tipo de racismo e de culto ao ódio ou à violência. Nesses casos, fala-se em crime.
            Ora, Basta folhearmos as páginas do Charlie Hebdo para constatarmos que são impudentes, irreverentes, iconoclastas, anticlericais, obscenos, não são, porém, brutais disseminadores do ódio como os terroristas que os abateram. É surpreendente como várias pessoas escreveram que os chargistas foram longe demais. Pode-se ler em filigrana certa condescendência com os assassinos, embora ninguém, em sã consciência ouse aprovar o ato de barbárie que ceifou 12 vidas no dia 7 de janeiro.
            Concordamos com o jornalista dinamarquês Flemming Rose ao afirmar: “A sátira é uma das maneiras pelas quais uma sociedade aberta responde à violência, às ameaças, à barbárie. A sátira é pacífica, mesmo quando fere. Ela não mata, mas ridiculariza e expõe publicamente aquilo que os outros querem manter oculto. Evidentemente, jamais uma charge valerá a vida de uma pessoa que seja. O problema é que alguns insistem nessa ideia.”
            A reação dos terroristas contra as charges de Maomé, assim como o apoio a essa reação violenta são intoleráveis. A propósito, é necessário esclarecer que o alvo preferido dos jornalistas do Charlie Hebdo são os muçulmanos fanáticos e não Maomé como nos esclarece Sérgio Augusto:
 “[...] os humoristas do Charlie ainda preferem o profeta aos fanáticos reducionistas que se empenham em transformar o Islã numa seita satânica e homicida; daí porque frequentemente o retratam de forma simpática e sempre avacalham os jihadistas e seus correligionários.”
Insistimos na grande conquista que representou para o povo francês a sociedade laica. Um dos precursores desse ideal foi o filósofo Pierre Bayle (1647-1706) que afirmou com rigor a separação entre moral e religião. Para ele, os ateus não eram piores que os idólatras.  A fim de ilustrar essa ideia aos leitores, Bayle propunha que imaginassem um ser de outro mundo visitando a terra. Se lhe dissessem antes da visita que havia em nosso planeta homens que temiam a Deus, que precisariam viver de forma virtuosa, evitando praticar o mal para gozar da recompensa divina após a morte, o ser do outro mundo pensaria que esses homens praticariam o bem, ajudariam o próximo e evitariam o vício. Ora, tal estrangeiro se surpreenderia com a disparidade entre a crença e os atos. Os princípios não teriam necessariamente influência sobre as ações, afirma Bayle. Somos, via de regra, piedosos nas palavras e impiedosos nas ações. Pretendemos adorar a Deus e seguimos apenas as paixões.
Da mesma forma que há cristãos ortodoxos que contradizem a palavra de Deus com seus atos, há ateus que são exemplos de conduta, a título de exemplo, Bayle citava os Antigos.
           Os jornalistas do Charlie Hebdo assassinados no mês passado, embora ateus, eram humanistas voltados e engajados em questões sociais. O redator Stephane Charbonnier (Charb) defendia os muçulmanos, o que talvez muitos não saibam.
            Vale acrescentar aqui o que escreveu o jornalista Mustafá Akyol: “Antes da expansão árabe com base em motivos políticos e do endurecimento da sharia (direito islâmico), o Alcorão ensinava aos muçulmanos, cuja fé costumava ser objeto de zombaria por parte dos pagãos: ‘Deus disse no livro que quando vocês ouvirem suas revelações lançadas no descrédito e objeto de zombaria, não deverão sentar-se com eles, enquanto não mudarem de conversa; porque seguramente vocês seriam como eles. ’ Essa é a resposta que o Alcorão sugere à zombaria. Não a violência, nem mesmo a censura.”
            O próprio Alcorão ensina a tolerância e não prega a punição terrena para a blasfêmia. Surpreende-nos bastante que algumas pessoas julguem o ódio dos terroristas compreensível.