segunda-feira, 3 de março de 2014

"As grandes paixões" um conto de Guy de Maupassant

– Então, a senhora se entedia? – Infelizmente sim, de forma terrível, senhor. – E isso vem acontecendo há muito tempo? – Oh, há muito tempo! – Há um ano? – Mais ou menos. – A senhora foi ver “Georgette”? – Fui. – Gostou? – Oh! Fascinante, fascinante! – E “Speranza”? – Vi também “Speranza”. É um balé delicioso. – A senhora leu “Tartarin nos Alpes”? – Claro, e no primeiro dia. – Agradou-lhe? – Muitíssimo. Primeiro, tinha uma paixão por “Tartarin”. Nada nunca me divertiu tanto como esse livro: é tão engraçado, tão espirituoso, tão irreverente. Apesar da minha admiração pelos romances de Daudet, ainda prefiro “Tartarin”, porque chego a chorar de tanto rir todas as vezes que o abro. Veja você, jamais se teve tanto espírito. E é tão divertido ver “Tartarin nos Alpes” depois de vê-lo no deserto! – Então a senhora passou uma noite excelente escutando “Georgette”, uma noite excelente vendo “Speranza”, e um dia excelente lendo “Tartarin”. E consegue se entediar? – Sim, muito tédio! O senhor acha então que isso é suficiente para ocupar minha vida, ter algumas horas de lazer de vez em quando? – Eu, senhora, acho dificílimo não somente obter algumas horas, mas alguns minutos de distração. Ora, sexta-feira a senhora irá a “Sapho”. No dia seguinte lerá o delicioso volume de novelas que Octave Mirbeau acaba de publicar: “Cartas de minha cabana” e no dia seguinte ainda “O Alpe homicida” de Paul Hervieu; e ficará ainda mais interessada quando reencontrar, nesse livro, os Alpes nevados onde “Tartarin” acaba de passear. E em breve terá outros espetáculos e outros livros, e jantares, e saraus, e mil coisas diversas que lhe conduzirão à primavera. E a senhora consegue se entediar? – Sim, sinto tédio. Acho-o insuportável por não me acreditar. – Acredito, minha cara amiga, apenas engana-se de palavra; não deveria dizer: sinto tédio, mas: não amo ninguém. Para vocês mulheres, tudo se limita ao amor. Amar ou não amar, eis o que importa. Quando vocês amam, a terra torna-se o paraíso terrestre, a vida um encanto; e quando vocês não amam, o universo e a vida tornam-se um inferno. – É verdade! – Claro que é verdade! E vocês consideram o amor como a mais bela, a mais generosa, a mais profunda, a mais poderosa das paixões. – Sim, concordo. – Porém, minha cara amiga, o amor, na verdade, é o mais mesquinho, o mais fraco, o mais ligeiro e o menos durável das fantasias que arrebatam o coração humano. – Meu Deus, como o senhor é tolo! – É possível! Tolo, mas correto. Raciocinemos. Conhece-se a força de uma locomotiva pelo número de vagões carregados que ela pode puxar, não é? Da mesma forma podemos medir a força de uma paixão pelos feitos que o homem realizou por ela. Para começar, a qualidade principal de uma paixão é a duração. Ora, o amor é essencialmente limitado. Quantos casos podemos citar em que ele durou uma vida inteira? O amor muda seu alvo várias vezes ao longo de uma existência e para definitivamente quando os cabelos embranquecem. Trata-se, antes, de um apetite do que de amor, um apetite que varia segundo as idades e que incide sobre várias pessoas. Ora, minha cara amiga, seria fácil provar que o jogo arruinou mais homens que o amor, e que o álcool matou mais gente. Então, as cartas e a embriaguês são duas paixões superiores. De fato, não podemos fazer nada de mais forte, para provar uma obsessão, que dar seu dinheiro e sua vida: as duas coisas mais preciosas que temos. Ora, se a estatística prova que o homem arruína-se de forma mais natural e com mais facilidade pelo bacará que por uma bela mulher, que ele resiste menos às cartas que aos belos olhos, que ele é atraído mais irresistivelmente pelos carteados que pelas alcovas, que ele deixa com mais paixão seus últimos centavos sobre uma mesa verde do que sobre as mãos delicadas de uma mulher, a dúvida não nos é mais possível. Aqueles que se arruínam por mulheres são raros hoje em dia, enquanto aqueles que se arruínam pelo jogo são numerosos. Quanto aos que se matam pelo amor ou por amor, não vemos mais. Aqueles que se matam pelo álcool são inúmeros. A senhora se surpreende, não é, minha cara amiga, que dois braços abertos não tenham tanto atrativo quanto um copinho de cachaça? Mas reconhecerá também que dois braços fechados são um instrumento de morte tão rápido e tão certo, quando a gente se entrega completamente, como um líquido amarelo ou verde bebido em excesso? Ora, a partir do momento que se morre mais de garrafa que do beijo, o que concluir? – O senhor é um grande estúpido! Não se pode nem mesmo responder a tais bobagens! – Vou mais longe. Afirmo que estas três paixões: o álcool, o jogo e o amor, consideradas temíveis porque são perigosas e provocam catástrofes, são bem menos vivas na realidade, bem menos potentes e bem menos intensas que a pesca, a caça e o bilhar! – Cale-se. O senhor irrita-me. – Oh! Eu compreendo-a. O coração da mulher exalta-se pelas paixões poéticas, aceita as paixões dramáticas e indigna-se com paixões inofensivas e burguesas, as mais tenazes, as mais vivas, as mais absorventes de todas. – Minha cara amiga, este homem calmo, com um chapéu de palha e sentado à beira de um rio, no qual ele mergulha uma bóia na ponta de uma linha, é o mais ardente dos apaixonados. Nada cessará seu invencível amor, nada! Quando Paris ardia em chamas, incendiada pela Comuna, quando o canhão fazia tremer as paredes, quando as balas voavam pelas ruas como moscas, quando os corpos baleados serviam de asfalto às ruas, quando dos córregos corria sangue em vez de água, contaram-se quarenta e sete homens, quarenta e sete sábios ou quarenta e sete loucos, sentados tranquilamente ao longo das margens do Sena, desde a Ponte du Jour até as Tulerias desabadas sob as chamas. Que lhes importava Paris em fogo, a Comuna vencida, a Pátria sangrenta, a guerra civil após a invasão prussiana, a estes homens que só tinham atenção para seus “flutuadores de cortiça?” A morte os ameaçava de todos os lados. As balas disparavam sobre suas cabeças, e seus corações batiam de esperança quando um peixe mordia a isca. Eu poderia citar cem exemplos tão evidentes como esses. A caça! Qual é o homem que faria por uma mulher ou mulheres, durante toda sua vida, o que um caçador faz por sua caça? Pense nas viagens em charrete, nas noites frias, para ir matar alguns coelhos, outras noites passadas nos pântanos, sob uma cabana de palha, nas chuvas que caem durante estações inteiras, nas prodigiosas fatigas, nas más refeições das fazendas, nas caminhadas intermináveis. Existe algum apaixonado que suportaria isso por sua amante? Existe um jogador que afrontaria cansaços e privações para um encontro num banco no fundo de um bosque? Existe um bêbado que faria vinte léguas sob a geada para beber um copo de fino champanhe, como faz um caçador para atingir uma galinhola? – Então? Então? Então? – Quanto ao bilhar? Oh, o bilhar? O homem apaixonado pelo bilhar só vê a vida, a política, a arte, a guerra, o amor sob a forma de três bolas de marfim, correndo uma atrás da outra, num campo de feltro verde. Ele divide a humanidade, não em homens e mulheres, em militares e civis, em aristocratas e democratas, mas em seres que jogam ou que não jogam bilhar. Vignaux é o seu papa, seu papa majestoso, misterioso, todo-poderoso, sobre-humano! Quando bebe, quando come, quando anda, quando se repousa, quando tosse, quando se assoa, quando ri, quando chora, quando cospe, quando se veste ou tira a roupa, ele só pensa no bilhar, e vê sem cessar, em tudo, as duas bolas brancas e a bola vermelha vagabundeando sob o empurrão de um taco pontudo, jogando uma eterna partida que só acabará no julgamento final! Esse homem acorda e vai ao boteco, passa o dia inteiro ao redor do móvel quadrado que contém e limita todos os seus desejos e todas as suas esperanças, só para na hora obscura em que o garçom lhe manda embora, apagando o último bico de gás. Oh! Eis uma paixão minha cara amiga! – Meu caro, o senhor vai forçar-me a lhe expulsar! – Não, não precisará chegar a este ponto. Vou embora. Mas...escute-me. A senhora crê na Providência, certo? – É claro! – Bem, vou rogar à Providência que lhe envie o que pede, o amor! O amor de um homem. Mas de sua parte, minha cara amiga, rogue a Deus, seu Deus, de conceder-me uma graça, uma graça infinita. – Qual? – Não advinha? Explico-lhe. Eu me entedio tanto quanto a senhora, e mesmo mais, muito mais! Bem, suplique ao céu de colocar no meu coração, no meu pobre coração vazio e sem esperança, o amor... o amor pela pesca ou pelo bilhar! É a única graça que peço a Deus. Tradução: Ana Luiza Reis Bedê

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