Um navio parte de Nova York para Buenos
Aires e a bordo nada menos que o campeão mundial de xadrez. Cidadão pouco
afeito a conversas, indiferente à cultura e obcecado por dinheiro- trata-se de
Mirko Czentovic. Orfão aos 12 anos, o futuro campeão ficou aos cuidados de um
padre de cidadezinha perdida na antiga Iugoslávia. Apesar dos esforços do cura,
o pupilo não demonstrou gosto pelo estudo. Mas isso não o impediu de tornar-se
imbatível no jogo dos reis. Ao longo dos anos, Czentovic ficou conhecido pela
proverbial rusticidade, bastava cruzar com um homem culto que imediatamente
recolhia-se em sua concha.
Durante
a viagem, o campeão se verá em situação inusitada frente a um obscuro senhor, o
Dr. B- personagem de grande densidade
psicológica, ao contrário de Czentovic. No ponto crucial da história, os dois
cidadãos se enfrentam diante do tabuleiro atraindo a admiração e a atenção de
inúmeros aficionados. Narrado em primeira pessoa por um viajante
sobre o qual nada sabemos, apenas que era dotado de sensibilidade aguçada, que
admirava o xadrez e foi um dos promotores do encontro entre os dois adversários.
Em dado momento, Dr. B revela sua relação com
o jogo de xadrez ao narrador- situa-se aqui o ponto culminante do romance. O
leitor é convidado a conhecer um pouco dos efeitos nefastos da chegada de
Hitler ao poder e a descobrir os requintes de uma tortura psicológica
devastadora. De fato, ficamos imersos no dramático relato do passageiro até
então desconhecido.
Até hoje a questão do gênero continua a intrigar os críticos. “O jogador
de xadrez” pode ser considerado romance
em virtude do tamanho (aproximadamente noventa páginas, de acordo com a
edição), da profunda análise psicológica e do não desprezível número de
personagens. Mas o texto pode também ser lido como um conto já que há poucas peripécias e um lugar único no qual a história
se desenrola- excetuando-se o grande parêntese que consiste na história do Dr.
B.
Em
certa passagem, o narrador expõe uma das mais belas apologias do jogo de xadrez
em textos literários:
“Mais ne se
rend-on pas déjà coupable d´une réduction fâcheuse en qualifiant les échecs de
jeu? N´est- ce pas plutôt une science, un art, quelque chose qui flotte entre
ces catégories comme le cercueil de Mahomet entre le ciel et la terre, une
combinaison unique de tous les contraires? Antique et cependant toujours
nouveau; mécanique dans son dispositif et pourtant mis en oeuvre par la seule
imagination; confiné dans un espace géométrique fixe et cependant illimité dans
ses combinaisons; en constant développement et cependant stérile; une pensée
qui ne mène à rien, une mathématique qui ne calcule rien, un art sans oeuvre,
une architecture immatérielle et qui pourtant, le fait est avéré, se révèle
plus durable dans son être et dans son existence que tous les livres et les
oeuvres d´art; le seul jeu qui appartienne à tous les peuples et à tous les
temps, et dont nul ne sait quel Dieu l´a apporté sur terre pour tuer l´ennui, aiguiser les sens,
stimuler l´âme.”
Um livro para ler de uma assentada.
Vale a pena.
“Le Joueur d´échecs”- Stefan Zweig, traduzido do alemão por Dominique Autrand, publicado
pela editora francesa Magnard e impresso
na tipografia italiana “La Tipografica Varese Sri”, 2016. Há tradução em português.
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